Núcleo OBEDUC - MG/RJ/RS

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quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Obstáculos à qualidade do ensino de Ciências no Brasil: o caso da professora Joana Souza, Josiane; Lima Junior, Paulo; Ostermann, Fernanda

Resumo
A questão de qualidade no ensino vem sendo colocada no centro de qualquer discussão acerca dos objetivos gerais da educação cientifica. Em outros trabalhos já se tem avançado sensivelmente na direção de compreender as concepções de qualidade sustentadas por professores de Ciências da educação básica. Neste trabalho investigamos outro ponto que pode ser crucial e definidor de futuras práticas: quais são os obstáculos que os docentes dizem encontrar no processo de busca por um ensino de qualidade. Os resultados apontam que a imposição de políticas educacionais e reformas educacionais instituídas por especialistas são assumidas pelos professores de Ciências como contrárias a medidas qualitativas. Outros pontos criticados foram os medidores oficiais que atuam como rankings quantitativos e a falta de pré-requisitos com que os alunos têm chegado ao ensino médio.
Palavras-chave: qualidade no ensino de Ciências, análise bakhtiniana, concepção de professores
1. Objetivos
Tal como ocorre em qualquer processo planejado da transformação de um sistema de relações, a transformação da educação científica jamais pode dispensar uma análise de sua conjuntura e de seus objetivos: Transformar o quê e com que propósito? Embora a pesquisa em educação científica tenha subjacente à sua produção acadêmica alguma medida de preocupação com a qualidade do ensino de Ciências, é só mais recentemente que se percebe uma mudança sensível de foco desde preocupações de ordem técnica com o ensino para uma reflexão mais profunda sobre os próprios objetivos da educação científica no conjunto do sistema educacional.
Ao longo das últimas décadas, a educação em Ciências tem sido impulsionada por interesses políticos na direção da formação de força de trabalho técnica e cientificamente qualificada. Paralelamente à valorização propedêutica (ensino preparatório para o vestibular ou para o trabalho técnico, por exemplo), a predominância de uma ideologia que considera a aprendizagem abstrata mais „nobre‟ que a aprendizagem prática (Lemke, 2005) tem contribuído para reforçar, no ensino de Ciências, a ênfase na aquisição de conceitos e seu distanciamento das relações entre ciência e sociedade.
O conceito de qualidade está posto no centro de qualquer discussão sobre os objetivos gerais da educação científica. De fato, órgãos governamentais responsáveis pela educação pública têm constantemente buscado desenvolver métodos (sempre mais ou menos controversos) para implementar um “ensino de qualidade", quantificando os níveis em que essa qualidade se configura nas escolas (por meio do IDEB, por exemplo) e gerindo as transformações do sistema educacional em vista dos seus propósitos.
Este trabalho insere-se no projeto do Observatório da Educação denominado “A qualidade no ensino de Ciências na perspectiva de professores do nível médio”. Transcorridos quase quatro anos de projeto e tendo avançado sensivelmente em direção à compreensão das concepções de qualidade sustentadas por professores da educação básica, percebemos que outro ponto poderia ser crucial e definidor de futuras práticas: quais são os obstáculos que os docentes dizem encontrar no processo de busca por um ensino de qualidade.
Assim, apresenta-se neste trabalho uma análise das interações discursivas de uma professora da educação básica em exercício na rede pública da cidade de Porto Alegre (ela será chamada professora Joana). As referidas interações discursivas ocorreram em um grupo focal (GATTI, 2005) sobre o tema Qualidade no ensino de Ciências, do qual participaram, além da referida professora, outros oito professores de escolas públicas e privadas da cidade de Porto Alegre. A análise apresentada tem seus fundamentos na filosofia da linguagem de Bakhtin (2003) e foi realizada com o propósito de responder à seguinte questão de pesquisa: Quais são os obstáculos que os professores de nível médio encontram para implementar um ensino de Ciências de qualidade?
2. Marco Teórico
A filosofia da linguagem de Bakhtin foi escolhida como marco teórico deste trabalho por ser essencial à sua realização analisar, além do que é dito, o contexto verbal e extraverbal do discurso. Bakhtin (2003) se preocupa em definir seu conceito de enunciado, unidade concreta da comunicação verbal, em oposição às unidades abstratas da língua (frase, oração, parágrafo). Nessa distinção, identifica uma série de propriedades exclusivas do enunciado (por exemplo, que todo o enunciado é produzido por alguém, direcionado a outra pessoa em situações concretas da comunicação verbal).
Ao lado de suas propriedades particulares, Bakhtin (2003) acrescenta que os enunciados podem ser caracterizados por três elementos: (1) estilo de linguagem (composto principalmente pelos jargões e recursos gramaticais empregados), (2) construção composicional (organização do enunciado em partes para formar um todo acabado), (3) conteúdo temático (o quê do enunciado).
Ajuntando a esses três conceitos o pressuposto de que, enquanto unidade concreta da língua, os enunciados podem ser bastante reveladores do contexto que circunscreve os falantes, passamos à análise dos enunciados da professora Joana com vistas a responder nossa questão de pesquisa.
3. Metodologia
Com o propósito de explicitar a relação entre o referencial teórico e as operações que constituem o procedimento de análise, utilizou-se uma versão, com pequenas adaptações, de um dispositivo analítico disponível na literatura (FERRAZ, 2012; VENEU, 2012). Este dispositivo leva em consideração, principalmente, dois aspectos da teoria de Bakhtin: primeiro, que a análise dos fenômenos lingüísticos deve ser feita em vista das condições concretas em que se realizam e, segundo, que a unidade de comunicação verbal é o enunciado (em oposição às unidades da língua tais como a frase e a oração). Em linhas gerais, o dispositivo propõe: (1) Identificação dos enunciados; (2) Leitura preliminar dos enunciados; (3) Descrição do contexto extraverbal e (4) Análise dos enunciados.
Identificação dos enunciados. Especificamente nesse trabalho, como analisamos uma discussão em um grupo focal, nem sempre o enunciado foi definido apenas pela alternância de sujeitos. Por exemplo, se o falante ainda não havia concluído sua fala e alguém o interrompesse brevemente para pedir algum esclarecimento, consideramos o enunciado contínuo, até haver uma real alternância de falante.
Leitura preliminar. Durante a segunda etapa, procurou-se identificar nos enunciados que constituem o corpus os seguintes elementos, tendo em vista a questão de pesquisa: (1) relações de sentido entre os enunciados dos participantes; (2) estilos de linguagem empregados; (3) construção composicional; e (4) conteúdo temático. No entanto,
durante a leitura preliminar, a identificação feita desses elementos ainda é mais ou menos intuitiva, flexível e pouco detalhada. O propósito principal dessa primeira leitura é, no contato com o texto, identificar algumas análises possíveis. Descrição do contexto extraverbal. Um enunciado verbal é sempre composto de duas partes; a que podemos compreender nas palavras e a que fica subentendida durante a fala. O conteúdo extraverbal diz respeito a essa segunda parte e está relacionado a três características: o horizonte comum dos interlocutores, o conhecimento e a compreensão comum da situação por parte dos interlocutores e a avaliação comum dessa mesma situação. Cabe ressaltar que comum aqui, quer dizer, compartilhamento de determinada situação entre os sujeitos, mas não necessariamente em concordância de opinião. Análise dos enunciados. Partindo de uma percepção mais ou menos intuitiva que adquirimos do texto durante a leitura preliminar e, confrontando essas percepções com mais dados textuais e extratextuais, a versão final da análise nos enunciados é produzida por meio das ferramentas teóricas disponíveis com o propósito de responder à questão de pesquisa. 4. Resultados 4.1. Da descrição do contexto extraverbal
No momento em que o grupo focal foi realizado o Estado do Rio Grande do Sul passava pelas seguintes transformações políticas: (1) final de governo PSDB; (2) uma reforma no plano da carreira dos professores estava sendo discutida; e (3) acabava de ser implantado o referencial curricular regional “Lições do Rio Grande”. Além disso, destaca-se também o episódio do julgamento de uma professora pelo judiciário1. Trata-se de um momento de sensível insegurança que os professores estão passando, e que fica evidenciado nas falas proferidas durante o grupo focal.Todos os participantes já haviam ministrado aula em escola pública e mesmo os que atualmente não estavam lecionando nesse tipo de instituição, acabaram sendo levados pelo grupo a criticar o sistema público de ensino. A professora Joana tem entre 50 e 60 anos e viveu o momento de ditadura no Brasil, já como educadora. Ela já ministrou aula em escolas particulares, mas atualmente leciona apenas em escola pública. Além de professora já foi vice-diretora. Sua formação inclui cursos de especialização e formação continuada. 4.2. Da análise dos enunciados Ao fazer a análise é possível evidenciar que em todos os seus enunciados a professora Joana procura utilizar uma linguagem coloquial, inclusive usando ditos populares em alguns momentos, para enfatizar suas ideias. Seus enunciados geralmente possuem uma construção composicional onde inicia com uma crítica, seguida de um argumento ou exemplo e finaliza com uma proposta para solução estruturada sobre sua vivência.
1 Em uma escola da região metropolitana de Porto Alegre, após um mutirão comunitário para a restauração estrutural dos prédios da instituição, um dos alunos pichou um dos muros. Uma das professoras da escola exigiu que o aluno limpasse. Enquanto o aluno limpava, ele ficava fazendo gracinhas e a professora o chamou de bobo da corte. Como alguns colegas filmaram o ato, a família do estudante processou a professora e a mesma foi acusada e sentenciada a pagar uma multa. Esse evento causou grande revolta nos docentes do RS.
Durante todo o grupo focal fica evidente o descontentamento não apenas da professora Joana mas de todos os professores com a política educacional do governo. Em um primeiro momento ela tece sua crítica com um enunciado que contém como conteúdo temático a imposição de medidas educacionais pelo governo. A professora coloca o Estado como um obstáculo intransponível, porém suas críticas vão além do Estado e se colocam também aos intelectuais que propõe leis e diretrizes para a educação. Essa professora almeja ser ouvida, pois acredita que em toda implementação de medidas educacionais os que mais poderiam contribuir para a melhoria significativa do ensino de Ciências, são os próprios docentes de nível básico, por estarem em sala de aula diariamente convivendo com a realidade. Joana constrói esse enunciado inicialmente justificando que seu problema não é com o aluno e a sala de aula, mas com as mudanças repentinas a que as diretrizes da educação estadual são submetidas. Em seguida traz exemplos e argumentos para enfatizar a sua crítica e, por fim, propõe uma possível solução para esse impasse, que é o professor ser ouvido e participar na elaboração das medidas educacionais.
Em outro enunciado, o conteúdo temático é acerca dos instrumentos para medir qualidade instituídos por órgãos de educação nacionais e internacionais. Ela tece a crítica, dizendo que os governantes e responsáveis pela educação no Brasil, parecem não estar preocupados se o aluno realmente está aprendendo ou não, mas todos estão muito preocupados com números e comparações. Acreditamos que nesse momento ela se refira as provas medidoras de qualidade existentes no Brasil, a exemplo de ENEM e SAEB e a alguns medidores internacionais que comparam médias educacionais entre países.
Nessa mesma direção, em outro enunciado, ela critica a atuação docente que, motivada por esses indicadores, acaba apenas tentando alcançar os objetivos quantitativos desse medidor. Em sua opinião o profissional que apenas faz com que os alunos passem de ano, sem mostrar a importância de ser um ser critico ou sem mostrar a importância real da educação, acaba por desvalorizar o seu trabalho e mal formar o seu aluno. Ela finaliza dizendo que os professores são pouco cobrados, e fazem seu trabalho de qualquer forma, mas que para essa cobrança ficasse mais efetiva o professor deveria ser melhor remunerado e ter melhores condições de trabalho. Esse enunciado tem como conteúdo temático o posicionamento do professor frente à profissão e as condições de trabalho docentes.
Outro ponto levantado como obstáculo em um enunciado seguinte, é a falta de pré-requisitos dos alunos ao avançarem em direção ao ensino médio. Esse enunciado é construído inicialmente pela crítica aos professores das séries iniciais, que segundo Joana não estão bem preparados. E novamente ela finaliza apontando uma possível solução ao dizer que nas séries iniciais os alunos deveriam aprender muito bem a ler e interpretar textos bem como ter o raciocínio lógico desenvolvido.
Conclusões
Um dos obstáculo trazido pela professora foi a relação entre a classe docente e o governo, muito embora as reclamações feitas pela docente não se limitem a criticas partidárias ou reivindicações salariais. A professora Joana almeja ser valorizada e respeitada como profissional. E ao se colocar como peça-chave na educação científica, sua opinião baseada na vivência como docente é de suma importância para a implementação de um ensino de Ciências de qualidade. As regras e metodologias impostas aos professores pelas políticas governamentais não são garantidoras de qualidade, pelo contrário, provocam o sentimento de desvalorização nos professores.
Bem como medir a qualidade através de rankings faz com que alguns professores apenas se esforcem para chegar aos resultados quantitativos esperados sem se preocupar com a aprendizagem em si. Em outros trabalhos (Rezende et.al.-2011) a desvalorização do professor e as más condições de trabalho também aparecem como um problema da qualidade de educação, bem como a questão salarial que em nossa análise não se mostrou tão forte.
Outra questão que surgiu nessa análise e que está de acordo com outros trabalhos já publicados (Rezende et.al.-2011), é a questão da falta de pré requisitos que os alunos têm chegado no ensino médio e na última parte do ensino fundamental. Entretanto, enquanto em nossa análise a culpabilidade desse fato é direcionada somente à falta de preparação de professores das séries anteriores, em Rezende et. al. (2011) aparece em evidência a falta de interesse do discente pelo estudo como responsável por essa questão.
Referências
BAKHTIN, M. M. Os Gêneros do Discurso. In: ______. Estética da Criação Verbal. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 261-306.
FERRAZ, G. Perspectivas de professores de Física sobre as políticas curriculares nacionais para o ensino médio. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde, NUTES, UFRJ, Rio de Janeiro, 2012
GATTI, B.A. Grupo focal na pesquisa em ciências humanas. Brasília: Líber Livro, 2005.
LEMKE, J.L. Research for the future of science education: New ways of learning new ways of living. In: International Congress on Research in Science Teaching, 7., 2005, Granada. Proceedings... Granada: [s.n.], 2005.
PINHEIRO, N. C. Educação de qualidade na perspectiva de professores de Física da educação básica : um estudo de interações discursivas em grupos focais, baseado na sociologia da educação de Pierre Bourdieu. Dissertação de Mestrado em Ensino de Física, Instituto de Física,UFRGS, Porto Alegre, 2011.
REZENDE, F; DUARTE, M.S; SCHWARTZ, L.B; CARVALHO,R.C. Qualidade da educação científica na voz dos professores. Ciência e Educação, v.17,n.2, p. 269-288, 2011.
VENEU, A.A. Perspectivas de professores de Física do ensino médio sobre as relações entre o ensino de Física e o mercado de trabalho: uma análise bakhtiniana. Dissertação
de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde, NUTES, UFRJ,Rio de Janeiro, 2012.

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