Núcleo OBEDUC - MG/RJ/RS

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quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Formação docente e qualidade da educação científica



Formação docente e qualidade da educação científica

Ostermann, Fernanda; Rezende, Flavia

Resumo. O objetivo deste trabalho foi investigar o papel da formação continuada configurada segundo o modelo da racionalidade técnica na qualidade da educação científica a partir do discurso de professores em serviço tomando-se a translinguística de Bakhtin como quadro teórico-metodológico. Foram entrevistados 20 professores atuantes em escolas de nível médio do Rio Grande do Sul, Brasil. Foi possível identificar essencialmente duas perspectivas de qualidade da educação científica, sendo que uma delas, foi observada em apenas um dos 20 professores. O discurso deste professor se aproxima do modelo de professor intelectual crítico. O discurso hegemônico defende a ênfase no conteúdo e na inovação metodológica para levar ao aluno os avanços tecnológicos contemporâneos.

Palavras-chave: formação docente, educação científica, qualidade, discurso.

Problematização e Objetivos
A reflexão já produzida sobre a formação de professores na área de ciências da natureza tem apontado e criticado o predomínio do modelo de formação no qual o professor é concebido como técnico, e sua atividade profissional como aplicação de teorias e técnicas na solução de problemas, ou seja, dirigida por uma racionalidade instrumental ou técnica. Villani e Freitas (2002) culpabilizam essa concepção de formação pela dificuldade de mudar o ensino, por não levar em conta os saberes dos professores, sua experiência e o contexto no qual eles ensinam. Inversamente do que poderia ser esperado, esta imposição provoca resistência à mudança, o que impede, na maioria das vezes, que os professores busquem soluções para os problemas do ensino.
Na linha da razão prática, a valorização da reflexão no processo de formação profissional é alvo do pensamento de Schön (2000), que entende o conhecimento profissional enquanto um processo no qual um resultado inesperado pode levar à reflexão (reflexão-na-ação), que tem uma função crítica, questionando a estrutura de pressupostos do ato de conhecer-na-ação. A partir desta concepção, o processo de formação se dá por meio de uma conversação reflexiva que ao contrário do modelo da racionalidade técnica, não se baseia nas dicotomias entre meios e fins, pesquisa e prática, fazer e conhecer, já que a prática assemelha-se à pesquisa, os meios e fins são concebidos de forma interdependente nos problemas, assim como o conhecer e fazer são inseparáveis.
No mesmo tom de contraposição à racionalidade técnica, surge o conceito de racionalidade crítica, proposto por Contreras (2002), que vem para ampliar a questão da reflexão sobre a ação educativa. Acrescentando um viés crítico ao contexto em que tal ação ocorre, conduz os professores a questionarem sua concepção de sociedade, de escola e de ensino. Nessa perspectiva, os professores participam tanto da construção do conhecimento teórico quanto da transformação do pensamento e da prática social. Dessa forma, o professor deve “desenvolver um conhecimento sobre o ensino que reconheça e questione sua natureza socialmente construída e o modo pelo qual se relaciona com a ordem social, bem como analisar as possibilidades transformadoras implícitas no contexto social das aulas e do ensino” (CONTRERAS, op. cit. p.157-158).
            Um dos contextos de formação continuada que vem ganhando destaque na realidade educacional brasileira é o mestrado profissional (MP), hegemonicamente desenvolvido na área de ciências da natureza segundo o modelo de racionalidade técnica. Trata-se de uma modalidade de formação stricto sensu, que tem como objetivo suprir as demandas sociais, políticas e econômicas associadas à qualificação de trabalhadores em serviço. Sua origem remonta à década de 90, quando o ensino superior brasileiro passou por diversas mudanças e reformulações legais, sob a influência das agências internacionais de financiamento. Essas reformas são evidenciadas a partir das diretrizes de reformulação do Estado e da educação superior difundidas pelo Banco Mundial para os países periféricos, as quais envolvem o deslocamento da concepção de "educação superior" para o de "educação terciária". Os cursos de mestrado profissional foram pensados como iniciativas que viabilizariam  um dos mecanismos previstos nessa reforma.
O crescimento desses cursos em âmbito nacional na área de ensino vem configurando uma determinada perspectiva de qualidade da educação científica. Para comporem essa perspectiva, estão associados nestes cursos, a ênfase no conteúdo específico e a racionalidade técnica como modelo de formação docente.
Diante da problemática da racionalidade técnica na formação continuada de professores das ciências da natureza que vem, temos como objetivo investigar em que medida as perspectivas de qualidade da educação científica no discurso de professores em serviço cursistas ou egressos de um MP em ensino de Física são marcados pelo modelo de formação.

Marco teórico
Nosso interesse no discurso dos professores nos levou à translinguística de Bakhtin por entendermos que a linguagem não pode estar separada da realidade sociocultural. Na visão de Bakhtin (2003), o emprego “da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes de uma ou de outra esfera da atividade humana” e são caracterizados pelo conteúdo (temático), por seu estilo verbal e, sobretudo por sua construção composicional (p. 261). O conteúdo temático está associado ao domínio de sentido do texto e o estilo de linguagem (verbal) corresponde “ao conjunto de procedimentos de acabamento de um enunciado”, ou seja, são os recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua utilizados para elaborá-lo.  A construção composicional está relacionada ao tipo de estruturação ou organização do enunciado e de acabamento, ou seja, “tipo de relação entre o locutor e os outros parceiros da comunicação verbal” (BAKHTIN, 2003, p. 266).
Esses três elementos estão indissoluvelmente relacionados no todo do enunciado, sendo que todos são marcados pela especificidade de uma dada esfera da comunicação. É essa especificidade que evidenciada a existência de um dado gênero, ou seja, “um dado tipo enunciado relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico” (BAKHTIN, 2003, p. 266). Em síntese, associado a cada enunciado existirá um gênero discursivo, que são “tipos de enunciados relativamente estáveis” que se encontram sempre vinculados a domínios da atividade humana e refletem suas condições específicas, particularidades e suas finalidades.

Metodologia
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com vinte professores (SCHAFFER E OSTERMANN, 2013) cursistas e egressos (designados na pesquisa de P1, P2, ... P20) do curso de Mestrado Profissional em Ensino de Física (MPEF) oferecido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Brasil. A partir do quadro teórico-metodológico, interessa-nos compreender como os posicionamentos de professores de ciências a respeito da qualidade da educação científica (REZENDE et al., 2011) relacionam-se com a formação docente. Para tal, será utilizado o dispositivo analítico (VENEU, 2012) elaborado com base nos principais conceitos bakhtinianos que compreende quatro etapas: identificação do enunciado; leitura preliminar do enunciado; descrição do contexto extraverbal e análise do enunciado.

Resultados
Os achados sugerem que apenas um professor exerce sua autonomia profissional em todos os quesitos investigados, aproximando-se do modelo de professor chamado de intelectual crítico (CONTRERAS, 2002) enquanto os demais, esperam se tornar melhores professores assimilando mais conteúdo de física de nível universitário e metodologias que poderão aplicar no ensino. A seguir, ilustraremos esse resultado com a análise de enunciados de um professor de cada grupo representativo do modelo de docência (especialista técnico – P7 e intelectual crítico – P5). Inicialmente, apresentamos o contexto extraverbal sintetizado a partir do contexto profissional do grupo de professores entrevistados.
No contexto atual de precarização do trabalho docente no Brasil, os professores entrevistados, em geral, buscam no MP a qualificação profissional, associada ao conhecimento de novas ferramentas metodológicas, à possibilidade de trocas entre os pares, mas principalmente, à ascensão econômica e à progressão na carreira profissional.
O professor P5, que foi considerado o profissional mais próximo do modelo de intelectual crítico, ao ser perguntado sobre  sua percepção em relação à diferença entre a realidade escolar e a formação recebida no MPEF, posicionou-se da seguinte forma:
P5 – Megaparsecs de distância...[...] eu acho que enquanto se trabalhar com estas teorias idealizadas duma coisa que não existe, vai se encontrar uma situação que não existe, [...] que não tem lá fora, [...] eu acho que só vai dar certo o dia que o pessoal bota a cara para fora do Instituto [...]”.
Na construção composicional deste enunciado encontram-se dois polos, ou seja, de um lado a realidade do próprio professor e, do outro, uma reflexão baseada nos problemas atuais das escolas. Estes argumentos estão baseados nos saberes experenciais, ou seja, na prática profissional, que é comparada à formação recebida no MP (saberes acadêmicos e da formação profissional). O enunciado evidencia a autoria de quem fala, ou seja, o autor pessoa, a partir da utilização do “eu”, como indivíduo social, e o autor-criador que reflete sobre o aluno real e a dificuldade de trabalhar com esta realidade.
O enunciado de P5 sugere uma relação dialógica e social ao qual estão presentes o autor da produção verbal, o destinatário (entrevistadora) e o superdestinatário (MPEF). A palavra “megaparsecs” evidencia a relação do locutor com o outro (entrevistadora) e com seus enunciados, pois pertence a um gênero particular das ciências exatas (a entrevistadora também é professora de física). A análise desse enunciado evidencia um conflito entre os saberes oriundos da experiência profissional e os saberes acadêmicos, ou seja, os saberes da formação profissional.
Quanto às responsabilidades de um professor frente aos seus alunos, P5 considera que:
P5 - tem a responsabilidade assim ética, moral assim, né? que a gente tem que prezar muito, assim, porque querendo ou não, por mais que eles gostem ou desgostem da gente, a gente, tipo, acaba sendo um exemplo para eles e a responsabilidade com a aprendizagem assim. Ah, eu acho que é muita responsabilidade, tipo, tem a responsabilidade com o que eles aprendam com que eles entendam o mundo, tem a responsabilidade com que eles possam depois ter, continuar os estudos, né? Tipo, tem a responsabilidade de quando tu tá ensinando, tem não, não fazer um ensino assim sem nenhuma ideologia, né? eu acho que tem essa responsabilidade ideológica também, né? ai, acho que é isso, assim.
Estão presentes nesse enunciado ecos de enunciados anteriores, oriundos, provavelmente do contexto escolar, representados pela possibilidade (ou necessidade) de continuidade de seus estudos. O enunciado também evidencia diferentes pontos de vista, ou seja, diferentes vozes sociais compartilhando o mesmo “status” no discurso. Essas vozes tratam da importância da aprendizagem, da visão de mundo, da percepção de futuro, da necessidade de posicionamento, ou identidade ideológica e da consciência do professor como referencial na vida do aluno (para além da mera transmissão de conteúdos).
Por outro lado, o professor P7, que é um exemplo de especialista técnico, ao discutir sobre responsabilidades de um professor frente aos seus alunos, posicionou-se da seguinte forma:
P7 – [...] dentro da, da visão da formação que a gente tem, e eu sei que não sou o único responsável ali, todos somos responsáveis dentro da sala de aula, mas a responsabilidade principal cabe ao professor, não como dono do saber, mas como guia do processo de aprendizagem. Então eu vejo fundamental a questão da preparação do professor, tem que estar bem preparado, em termos de conteúdos e metodologias. É o que tu é, tu é o referencial naquele ambiente.
Esse enunciado reflete as finalidades da prática educativa direcionada ao ensino dos conteúdos e às metodologias, o que evidencia um modelo de professor privado de autonomia como emancipação ou como processo e sob forte influência da racionalidade técnica. Esse resultado indica a autonomia como status ou ilusória. Por outro lado, há uma possibilidade de interpretação que reconheceria a ausência desta, pois se trata apenas da manutenção das diretrizes técnicas pré-estabelecidas na formação de professores.
Ao descrever sua contribuição para a comunidade escolar e para a sociedade, a partir da formação obtida no MPEF, disse:
P7 – Eu acho que a qualidade das minhas aulas, com certeza, foram afetadas positivamente, né? Eu tenho impressão, clara, que muitos temas a gente discutia de uma forma muito superficial, hoje em dia, eu me sinto um pouco mais seguro pra discutir de uma forma mais, ahn, um pouco mais profunda, né? A gente se preocupa em dar uma visão mais ampla da física, uma visão, muitas vezes, de pesquisa de física, que talvez na época da graduação eu não tinha menor noção, né? Isso, eu acho que dá uma noção do que é o fazer de físico e não apenas o aprender física.
O conteúdo temático desse enunciado evidencia a qualidade da prática educativa associada, principalmente,  aos conteúdos de física e à profundidade em que podem, depois da formação obtida, serem transmitidos. Esse enunciado também sugere que o professor está preocupado com sua eficiência e êxito. É um discurso apolítico e direcionado ao domínio técnico.

Conclusões
Diante desses resultados, consideramos que os processos de formação docente (inicial e continuada) necessitam ir além de conteúdos específicos das disciplinas científicas. A reorientação dos currículos das Ciências e dos processos de formação docente para questões políticas e problemas sociais está em sintonia com teorias e movimentos educacionais recentes e precisa ser enfrentada urgentemente a custa do ensino de ciências continuar tendo pouco protagonismo nas mudanças sociais.

Referências
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 4ª Edição, 2003. 476 p.
CONTRERAS, J. A autonomia do professor. São Paulo: Cortez. 2002.
LIMA, K. R. de S. O Banco Mundial e a educação superior brasileira na primeira década do novo século. Katálysis. v. 14, n. 1, 86-94, jan./jun. 2011.
REZENDE, F.; DUARTE, M. S.; SCHWARTZ, L. B.  e  CARVALHO, R. C. de. Qualidade da educação científica na voz dos professores. Ciência & Educação, v.17, n.2, 269-288,  2011.
SCHÄFFER. E. A.; OSTERMANN, F.  Autonomia profissional na formação de professores: uma análise bakhtiniana de entrevistas realizadas com alunos de um Mestrado Profissional em Ensino de Física. Aceito para publicação na Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, 2013.
SCHÖN, D. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre, RS: Artes Médicas, 2000.
VENEU, A. A. Perspectivas de professores de física do ensino médio sobre as relações entre o ensino de física e o mercado de trabalho: uma análise Bakhtiniana. Dissertação (mestrado) – UFRJ, NUTES, Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde, 2012.
VILLANI, A.; FREITAS, D. Formação de Professores de Ciências: um desafio sem limites. Investigações em Ensino de Ciências, v. 7, n. 3, 215-230, set, 2002.


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