Formação docente
e qualidade da educação científica
Ostermann,
Fernanda; Rezende, Flavia
Resumo. O objetivo deste
trabalho foi investigar o papel da formação continuada configurada segundo o
modelo da racionalidade técnica na qualidade da educação científica a partir do
discurso de professores em serviço tomando-se a translinguística de Bakhtin
como quadro teórico-metodológico. Foram entrevistados 20 professores atuantes
em escolas de nível médio do Rio Grande do Sul, Brasil. Foi possível identificar
essencialmente duas perspectivas de qualidade da educação científica, sendo que
uma delas, foi observada em apenas um dos 20 professores. O discurso deste
professor se aproxima do modelo de professor intelectual crítico. O discurso
hegemônico defende a ênfase no conteúdo e na inovação metodológica para levar ao
aluno os avanços tecnológicos contemporâneos.
Palavras-chave: formação
docente, educação científica, qualidade, discurso.
Problematização
e Objetivos
A reflexão já
produzida sobre a formação de professores na área de ciências da natureza tem
apontado e criticado o predomínio do modelo de formação no qual o professor é
concebido como técnico, e sua atividade profissional como aplicação de teorias
e técnicas na solução de problemas, ou seja, dirigida por uma racionalidade
instrumental ou técnica. Villani e Freitas (2002) culpabilizam essa concepção
de formação pela dificuldade de mudar o ensino, por não levar em conta os
saberes dos professores, sua experiência e o contexto no qual eles ensinam.
Inversamente do que poderia ser esperado, esta imposição provoca resistência à
mudança, o que impede, na maioria das vezes, que os professores busquem
soluções para os problemas do ensino.
Na linha da
razão prática, a valorização da reflexão no processo de formação profissional é
alvo do pensamento de Schön (2000), que entende o conhecimento profissional
enquanto um processo no qual um resultado inesperado pode levar à reflexão
(reflexão-na-ação), que tem uma função crítica, questionando a estrutura de
pressupostos do ato de conhecer-na-ação. A partir desta concepção, o processo
de formação se dá por meio de uma conversação reflexiva que ao contrário do
modelo da racionalidade técnica, não se baseia nas dicotomias entre meios e
fins, pesquisa e prática, fazer e conhecer, já que a prática assemelha-se à
pesquisa, os meios e fins são concebidos de forma interdependente nos
problemas, assim como o conhecer e fazer são inseparáveis.
No mesmo tom de
contraposição à racionalidade técnica, surge o conceito de racionalidade
crítica, proposto por Contreras (2002), que vem para ampliar a questão da
reflexão sobre a ação educativa. Acrescentando um viés crítico ao contexto em
que tal ação ocorre, conduz os professores a questionarem sua concepção de
sociedade, de escola e de ensino. Nessa perspectiva, os professores participam
tanto da construção do conhecimento teórico quanto da transformação do
pensamento e da prática social. Dessa forma, o professor deve “desenvolver um
conhecimento sobre o ensino que reconheça e questione sua natureza socialmente
construída e o modo pelo qual se relaciona com a ordem social, bem como
analisar as possibilidades transformadoras implícitas no contexto social das
aulas e do ensino” (CONTRERAS, op. cit. p.157-158).
Um dos contextos
de formação continuada que vem ganhando destaque na realidade educacional
brasileira é o mestrado profissional (MP), hegemonicamente desenvolvido na área
de ciências da natureza segundo o modelo de racionalidade técnica. Trata-se de
uma modalidade de formação stricto sensu,
que tem como objetivo suprir as demandas sociais, políticas e econômicas
associadas à qualificação de trabalhadores em serviço. Sua origem remonta à
década de 90, quando o ensino superior brasileiro passou por diversas mudanças
e reformulações legais, sob a influência das agências internacionais de
financiamento. Essas reformas são evidenciadas a partir das diretrizes de
reformulação do Estado e da educação superior difundidas pelo Banco Mundial
para os países periféricos, as quais envolvem o deslocamento da concepção de
"educação superior" para o de "educação terciária". Os
cursos de mestrado profissional foram pensados como iniciativas que
viabilizariam um dos mecanismos previstos
nessa reforma.
O crescimento
desses cursos em âmbito nacional na área de ensino vem configurando uma
determinada perspectiva de qualidade da educação científica. Para comporem essa
perspectiva, estão associados nestes cursos, a ênfase no conteúdo específico e
a racionalidade técnica como modelo de formação docente.
Diante da problemática
da racionalidade técnica na formação continuada de professores das ciências da
natureza que vem, temos como objetivo investigar em que medida as perspectivas de
qualidade da educação científica no discurso de professores em serviço cursistas
ou egressos de um MP em ensino de Física são marcados pelo modelo de formação.
Marco teórico
Nosso interesse
no discurso dos professores nos levou à translinguística de Bakhtin por
entendermos que a linguagem não pode estar separada da realidade sociocultural.
Na visão de Bakhtin (2003), o emprego “da língua efetua-se em forma de
enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes
de uma ou de outra esfera da atividade humana” e são caracterizados pelo
conteúdo (temático), por seu estilo verbal e, sobretudo por sua construção
composicional (p. 261). O conteúdo temático está associado ao domínio de
sentido do texto e o estilo de linguagem (verbal) corresponde “ao conjunto de
procedimentos de acabamento de um enunciado”, ou seja, são os recursos
lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua utilizados para
elaborá-lo. A construção composicional
está relacionada ao tipo de estruturação ou organização do enunciado e de
acabamento, ou seja, “tipo de relação entre o locutor e os outros parceiros da
comunicação verbal” (BAKHTIN, 2003, p. 266).
Esses três
elementos estão indissoluvelmente relacionados no todo do enunciado, sendo que
todos são marcados pela especificidade de uma dada esfera da comunicação. É
essa especificidade que evidenciada a existência de um dado gênero, ou seja,
“um dado tipo enunciado relativamente estável do ponto de vista temático,
composicional e estilístico” (BAKHTIN, 2003, p. 266). Em síntese, associado a
cada enunciado existirá um gênero discursivo, que são “tipos de enunciados
relativamente estáveis” que se encontram sempre vinculados a domínios da
atividade humana e refletem suas condições específicas, particularidades e suas
finalidades.
Metodologia
Foram realizadas
entrevistas semiestruturadas com vinte professores (SCHAFFER E OSTERMANN, 2013)
cursistas e egressos (designados na pesquisa de P1, P2, ... P20) do curso de
Mestrado Profissional em Ensino de Física (MPEF) oferecido pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, no Brasil. A partir do quadro
teórico-metodológico, interessa-nos compreender como os posicionamentos de professores
de ciências a respeito da qualidade da educação científica (REZENDE et al.,
2011) relacionam-se com a formação docente. Para tal, será utilizado o
dispositivo analítico (VENEU, 2012) elaborado com base nos principais conceitos
bakhtinianos que compreende quatro etapas: identificação do enunciado; leitura preliminar do enunciado; descrição do contexto extraverbal e análise do enunciado.
Resultados
Os achados sugerem que apenas um
professor exerce sua autonomia profissional em todos os quesitos investigados,
aproximando-se do modelo de professor chamado de intelectual crítico (CONTRERAS,
2002) enquanto os demais, esperam se tornar melhores professores assimilando
mais conteúdo de física de nível universitário e metodologias que poderão
aplicar no ensino. A seguir, ilustraremos esse resultado com a análise de
enunciados de um professor de cada grupo representativo do modelo de docência
(especialista técnico – P7 e intelectual crítico – P5). Inicialmente,
apresentamos o contexto extraverbal sintetizado a partir do contexto profissional
do grupo de professores entrevistados.
No contexto atual de precarização do
trabalho docente no Brasil, os professores entrevistados, em geral, buscam no
MP a qualificação profissional, associada ao conhecimento de novas ferramentas
metodológicas, à possibilidade de trocas entre os pares, mas principalmente, à ascensão
econômica e à progressão na carreira profissional.
O professor P5, que foi considerado o
profissional mais próximo do modelo de intelectual crítico, ao ser perguntado
sobre sua percepção em relação à
diferença entre a realidade escolar e a formação recebida no MPEF, posicionou-se
da seguinte forma:
P5 – Megaparsecs
de distância...[...] eu acho que enquanto se trabalhar com estas teorias
idealizadas duma coisa que não existe, vai se encontrar uma situação que não
existe, [...] que não tem lá fora, [...] eu acho que só vai dar certo o dia que
o pessoal bota a cara para fora do Instituto [...]”.
Na construção composicional deste
enunciado encontram-se dois polos, ou seja, de um lado a realidade do próprio professor
e, do outro, uma reflexão baseada nos problemas atuais das escolas. Estes
argumentos estão baseados nos saberes experenciais, ou seja, na prática
profissional, que é comparada à formação recebida no MP (saberes acadêmicos e
da formação profissional). O enunciado evidencia a autoria de quem fala, ou
seja, o autor pessoa, a partir da utilização do “eu”, como indivíduo social, e
o autor-criador que reflete sobre o aluno real e a dificuldade de trabalhar com
esta realidade.
O enunciado de P5 sugere uma relação
dialógica e social ao qual estão presentes o autor da produção verbal, o
destinatário (entrevistadora) e o superdestinatário (MPEF). A palavra
“megaparsecs” evidencia a relação do locutor com o outro (entrevistadora) e com
seus enunciados, pois pertence a um gênero particular das ciências exatas (a
entrevistadora também é professora de física). A análise desse enunciado
evidencia um conflito entre os saberes oriundos da experiência profissional e
os saberes acadêmicos, ou seja, os saberes da formação profissional.
Quanto às responsabilidades de um
professor frente aos seus alunos, P5 considera que:
P5 - tem
a responsabilidade assim ética, moral assim, né? que a gente tem que prezar
muito, assim, porque querendo ou não, por mais que eles gostem ou desgostem da
gente, a gente, tipo, acaba sendo um exemplo para eles e a responsabilidade com
a aprendizagem assim. Ah, eu acho que é muita responsabilidade, tipo, tem a
responsabilidade com o que eles aprendam com que eles entendam o mundo, tem a responsabilidade
com que eles possam depois ter, continuar os estudos, né? Tipo, tem a
responsabilidade de quando tu tá ensinando, tem não, não fazer um ensino assim
sem nenhuma ideologia, né? eu acho que tem essa responsabilidade ideológica
também, né? ai, acho que é isso, assim.
Estão presentes nesse enunciado ecos de
enunciados anteriores, oriundos, provavelmente do contexto escolar,
representados pela possibilidade (ou necessidade) de continuidade de seus
estudos. O enunciado também evidencia diferentes pontos de vista, ou seja,
diferentes vozes sociais compartilhando o mesmo “status” no discurso. Essas
vozes tratam da importância da aprendizagem, da visão de mundo, da percepção de
futuro, da necessidade de posicionamento, ou identidade ideológica e da consciência
do professor como referencial na vida do aluno (para além da mera transmissão
de conteúdos).
Por outro lado, o professor P7, que é um
exemplo de especialista técnico, ao discutir sobre responsabilidades de um
professor frente aos seus alunos, posicionou-se da seguinte forma:
P7 – [...] dentro da, da visão da formação que a gente tem, e eu sei que não sou o
único responsável ali, todos somos responsáveis dentro da sala de aula, mas a
responsabilidade principal cabe ao professor, não como dono do saber, mas como
guia do processo de aprendizagem. Então eu vejo fundamental a questão da
preparação do professor, tem que estar bem preparado, em termos de conteúdos e
metodologias. É o que tu é, tu é o referencial naquele ambiente.
Esse enunciado reflete as finalidades da
prática educativa direcionada ao ensino dos conteúdos e às metodologias, o que
evidencia um modelo de professor privado de autonomia como emancipação ou como
processo e sob forte influência da racionalidade técnica. Esse resultado indica
a autonomia como status ou ilusória. Por outro lado, há uma possibilidade de
interpretação que reconheceria a ausência desta, pois se trata apenas da
manutenção das diretrizes técnicas pré-estabelecidas na formação de professores.
Ao descrever sua contribuição para a
comunidade escolar e para a sociedade, a partir da formação obtida no MPEF,
disse:
P7 – Eu
acho que a qualidade das minhas aulas, com certeza, foram afetadas
positivamente, né? Eu tenho impressão, clara, que muitos temas a gente discutia
de uma forma muito superficial, hoje em dia, eu me sinto um pouco mais seguro
pra discutir de uma forma mais, ahn, um pouco mais profunda, né? A gente se
preocupa em dar uma visão mais ampla da física, uma visão, muitas vezes, de
pesquisa de física, que talvez na época da graduação eu não tinha menor noção,
né? Isso, eu acho que dá uma noção do que é o fazer de físico e não apenas o
aprender física.
O conteúdo temático desse enunciado
evidencia a qualidade da prática educativa associada, principalmente, aos conteúdos de física e à profundidade em
que podem, depois da formação obtida, serem transmitidos. Esse enunciado também
sugere que o professor está preocupado com sua eficiência e êxito. É um discurso
apolítico e direcionado ao domínio técnico.
Conclusões
Diante desses resultados, consideramos que
os processos de formação docente (inicial e continuada) necessitam ir além de
conteúdos específicos das disciplinas científicas. A reorientação dos
currículos das Ciências e dos processos de formação docente para questões
políticas e problemas sociais está em sintonia com teorias e movimentos
educacionais recentes e precisa ser enfrentada urgentemente a custa do ensino
de ciências continuar tendo pouco protagonismo nas mudanças sociais.
Referências
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da criação verbal. São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 4ª Edição, 2003.
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CONTRERAS, J. A autonomia do professor. São
Paulo: Cortez. 2002.
LIMA, K. R. de S. O Banco
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REZENDE,
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SCHÄFFER. E. A.; OSTERMANN, F. Autonomia profissional na formação de
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VENEU, A. A. Perspectivas
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(mestrado) – UFRJ, NUTES, Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e
Saúde, 2012.
VILLANI, A.; FREITAS, D. Formação de Professores de
Ciências: um desafio sem limites. Investigações em Ensino de Ciências, v.
7, n. 3, 215-230, set, 2002.
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