IX CONGRESO INTERNACIONAL
SOBRE INVESTIGACIÓN EN DIDÁCTICA DE LAS CIENCIAS
Girona, 9-12 de
septiembre de 2013
COMUNICACIÓN
1018
OBSTÁCULOS
À QUALIDADE DO ENSINO DE CIÊNCIAS NO BRASIL: O CASO DA PROFESSORA JOANA
Josiane de Souza, Paulo Roberto Menezes Lima Júnior,
Fernanda Ostermann
UFRGS
RESUMO: A questão de qualidade no ensino vem
sendo colocada no centro de qualquer discussão acerca dos objetivos gerais da
educação cientifica. Em outros trabalhos já se tem avançado sensivelmente na
direção de compreender as concepções de qualidade sustentadas por professores
de Ciências da educação básica. Neste trabalho investigamos outro ponto que
pode ser crucial e definidor de futuras práticas: quais são os obstáculos que
os docentes dizem encontrar no processo de busca por um ensino de qualidade. Os
resultados apontam que a imposição de políticas educacionais e reformas
educacionais instituídas por especialistas são assumidas pelos professores de
Ciências como contrárias a medidas qualitativas. Outros pontos criticados foram
os medidores oficiais que atuam como rankings quantitativos e a falta de
pré-requisitos com que os alunos têm chegado ao ensino médio.
PALAVRAS-CHAVE:
qualidade no ensino de
Ciências, análise bakhtiniana, concepção de professores
OBJETIVOS
Tal como ocorre em qualquer processo planejado da transformação de
um sistema de relações, a transformação da educação científica jamais pode
dispensar uma análise de sua conjuntura e de seus objetivos: Transformar o quê
e com que propósito? Embora a pesquisa em educação científica tenha subjacente
à sua produção acadêmica alguma medida de preocupação com a qualidade do ensino
de Ciências, é só mais recentemente que se percebe uma mudança sensível de foco
desde preocupações de ordem técnica com o ensino para uma reflexão
mais profunda sobre os próprios objetivos da educação científica no
conjunto do sistema educacional.
Ao longo das últimas décadas, a educação em
Ciências tem sido impulsionada por interesses políticos na direção da formação
de força de trabalho técnica e cientificamente qualificada. Paralelamente à
valorização propedêutica (ensino preparatório para o vestibular ou para o
trabalho técnico, por exemplo), a predominância de uma ideologia que considera
a aprendizagem abstrata mais ‘nobre’ que a aprendizagem prática (Lemke, 2005)
tem contribuído para reforçar, no ensino de Ciências, a ênfase na aquisição de
conceitos e seu distanciamento das relações entre ciência e sociedade.
O conceito de qualidade está posto no
centro de qualquer discussão sobre os objetivos gerais da educação científica.
De fato, órgãos governamentais responsáveis pela educação pública têm constantemente
buscado desenvolver métodos (sempre mais ou menos controversos) para
implementar um “ensino de qualidade”, quantificando os níveis em que essa
qualidade se configura nas escolas (por meio do IDEB, por exemplo) e gerindo as
transformações do sistema educacional em vista dos seus propósitos.
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Este trabalho insere-se no projeto do
Observatório da Educação denominado “A qualidade no ensino de Ciências na
perspectiva de professores do nível médio”. Transcorridos quase quatro anos de
projeto e tendo avançado sensivelmente em direção à compreensão das concepções
de qualidade sustentadas por professores da educação básica, percebemos que
outro ponto poderia ser crucial e definidor de futuras práticas: quais são os obstáculos
que os docentes dizem encontrar no processo de busca por um ensino de
qualidade.
Assim, apresenta-se neste trabalho uma
análise das interações discursivas de uma professora da educação básica em
exercício na rede pública da cidade de Porto Alegre (ela será chamada professora
Joana). As referidas interações discursivas ocorreram em um grupo focal (GATTI,
2005) sobre o tema Qualidade no ensino de Ciências, do qual
participaram, além da referida professora, outros oito professores de escolas
públicas e privadas da cidade de Porto Alegre. A análise apresentada tem seus
fundamentos na filosofia da linguagem de Bakhtin (2003) e foi realizada com o
propósito de responder à seguinte questão de pesquisa: Quais são os obstáculos
que os professores de nível médio encontram para implementar um ensino de
Ciências de qualidade?
MARCO TEÓRICO
A filosofia da linguagem de Bakhtin foi escolhida como marco
teórico deste trabalho por ser essencial à sua realização analisar, além do que
é dito, o contexto verbal e extraverbal do discurso. Bakhtin (2003) se preocupa
em definir seu conceito de enunciado, unidade concreta da comunicação verbal,
em oposição às unidades abstratas da língua (frase, oração, parágrafo). Nessa
distinção, identifica uma série de propriedades exclusivas do enunciado (por
exemplo, que todo o enunciado é produzido por alguém, direcionado a outra
pessoa em situações concretas da comunicação verbal).
Ao lado de suas propriedades particulares,
Bakhtin (2003) acrescenta que os enunciados podem ser caracterizados por três
elementos: (1) estilo de linguagem (composto principalmente pelos jargões e
recursos gramaticais empregados), (2) construção composicional (organização do
enunciado em partes para formar um todo acabado), (3) conteúdo temático (o quê
do enunciado).
Ajuntando a esses três conceitos o
pressuposto de que, enquanto unidade concreta da língua, os enunciados podem
ser bastante reveladores do contexto que circunscreve os falantes, passamos à
análise dos enunciados da professora Joana com vistas a responder nossa
questão de pesquisa.
METODOLOGIA
Com o propósito de explicitar a relação entre o referencial
teórico e as operações que constituem o procedimento de análise, utilizou-se
uma versão, com pequenas adaptações, de um dispositivo analítico disponível na
literatura (FERRAZ, 2012; VENEU, 2012). Este dispositivo leva em consideração,
principalmente, dois aspectos da teoria de Bakhtin: primeiro, que a análise dos
fenômenos lingüísticos deve ser feita em vista das condições concretas em que
se realizam e, segundo, que a unidade de comunicação verbal é o enunciado (em
oposição às unidades da língua tais como a frase e a oração). Em linhas gerais,
o dispositivo propõe: (1) Identificação dos enunciados; (2) Leitura preliminar
dos enunciados; (3) Descrição do contexto extraverbal e (4) Análise dos
enunciados.
Identificação dos enunciados. Especificamente nesse trabalho, como
analisamos uma discussão em um grupo focal, nem sempre o enunciado foi definido
apenas pela alternância de sujeitos. Por exemplo, se o falante ainda não havia
concluído sua fala e alguém o interrompesse brevemente para pedir algum
esclarecimento, consideramos o enunciado contínuo, até haver uma real
alternância de falante.
Leitura preliminar. Durante a segunda etapa, procurou-se
identificar nos enunciados que constituem o corpus os seguintes elementos,
tendo em vista a questão de pesquisa: (1) relações de sentido
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entre os enunciados dos participantes; (2)
estilos de linguagem empregados; (3) construção composicional; e (4) conteúdo
temático. No entanto, durante a leitura preliminar, a identificação feita
desses elementos ainda é mais ou menos intuitiva, flexível e pouco detalhada. O
propósito principal dessa primeira leitura é, no contato com o texto,
identificar algumas análises possíveis.
Descrição do contexto extraverbal. Um enunciado verbal é sempre composto de duas
partes; a que podemos compreender nas palavras e a que fica subentendida
durante a fala. O conteúdo extraverbal diz respeito a essa segunda parte e
está relacionado a três características: o horizonte comum dos interlocutores,
o conhecimento e a compreensão comum da situação por parte dos interlocutores e
a avaliação comum dessa mesma situação. Cabe ressaltar que comum aqui, quer
dizer, compartilhamento de determinada situação entre os sujeitos, mas não
necessariamente em concordância de opinião.
Análise dos enunciados. Partindo de uma percepção mais ou menos
intuitiva que adquirimos do texto durante a leitura preliminar e, confrontando
essas percepções com mais dados textuais e extratextuais, a versão final da
análise nos enunciados é produzida por meio das ferramentas teóricas disponíveis
com o propósito de responder à questão de pesquisa.
RESULTADOS
Da descrição do contexto extraverbal
No momento em que o grupo focal foi realizado o Estado do Rio
Grande do Sul passava pelas seguintes transformações políticas: (1) final de
governo PSDB; (2) uma reforma no plano da carreira dos professores estava sendo
discutida; e (3) acabava de ser implantado o referencial curricular regional
“Lições do Rio Grande”. Além disso, destaca-se também o episódio do julgamento
de uma professora pelo judiciário1. Trata-se de um momento de sensível
insegurança que os professores estão passando, e que fica evidenciado nas falas
proferidas durante o grupo focal.Todos os participantes já haviam ministrado
aula em escola pública e mesmo os que atualmente não estavam lecionando nesse
tipo de instituição, acabaram sendo levados pelo grupo a criticar o sistema
público de ensino.
A professora Joana tem entre 50 e 60 anos e
viveu o momento de ditadura no Brasil, já como educadora. Ela já ministrou aula
em escolas particulares, mas atualmente leciona apenas em escola pública. Além
de professora já foi vice-diretora. Sua formação inclui cursos de
especialização e formação continuada.
Da
análise dos enunciados
Ao fazer a análise é possível evidenciar que em todos os seus
enunciados a professora Joana procura utilizar uma linguagem coloquial,
inclusive usando ditos populares em alguns momentos, para enfatizar suas
ideias. Seus enunciados geralmente possuem uma construção composicional onde
inicia com uma crítica, seguida de um argumento ou exemplo e finaliza com uma
proposta para solução estruturada sobre sua vivência.
Durante todo o grupo focal fica evidente o
descontentamento não apenas da professora Joana mas de todos os professores com
a política educacional do governo. Em um primeiro momento ela tece sua
1. Em uma escola da região metropolitana de Porto Alegre,
após um mutirão comunitário para a restauração estrutural dos prédios da
instituição, um dos alunos pichou um dos muros. Uma das professoras da escola
exigiu que o aluno limpasse. Enquanto o aluno limpava, ele ficava fazendo
gracinhas e a professora o chamou de bobo da corte. Como alguns colegas
filmaram o ato, a família do estudante processou a professora e a mesma foi
acusada e sentenciada a pagar uma multa. Esse evento causou grande revolta nos
docentes do RS. 1021
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crítica com um
enunciado que contém como conteúdo temático a imposição de medidas educacionais
pelo governo. A professora coloca o Estado como um obstáculo intransponível,
porém suas críticas vão além do Estado e se colocam também aos intelectuais que
propõe leis e diretrizes para a educação. Essa professora almeja ser ouvida,
pois acredita que em toda implementação de medidas educacionais os que mais
poderiam contribuir para a melhoria significativa do ensino de Ciências, são os
próprios docentes de nível básico, por estarem em sala de aula diariamente
convivendo com a realidade. Joana constrói esse enunciado inicialmente
justificando que seu problema não é com o aluno e a sala de aula, mas com as
mudanças repentinas a que as diretrizes da educação estadual são submetidas. Em
seguida traz exemplos e argumentos para enfatizar a sua crítica e, por fim,
propõe uma possível solução para esse impasse, que é o professor ser ouvido e
participar na elaboração das medidas educacionais.
Em outro enunciado, o conteúdo temático é
acerca dos instrumentos para medir qualidade instituídos por órgãos de
educação nacionais e internacionais. Ela tece a crítica, dizendo que os
governantes e responsáveis pela educação no Brasil, parecem não estar
preocupados se o aluno realmente está aprendendo ou não, mas todos estão muito
preocupados com números e comparações. Acreditamos que nesse momento ela se
refira as provas medidoras de qualidade existentes no Brasil, a exemplo de ENEM
e SAEB e a alguns medidores internacionais que comparam médias educacionais
entre países.
Nessa mesma direção, em outro enunciado, ela
critica a atuação docente que, motivada por esses indicadores, acaba apenas
tentando alcançar os objetivos quantitativos desse medidor. Em sua opinião o
profissional que apenas faz com que os alunos passem de ano, sem mostrar a
importância de ser um ser critico ou sem mostrar a importância real da
educação, acaba por desvalorizar o seu trabalho e mal formar o seu aluno. Ela
finaliza dizendo que os professores são pouco cobrados, e fazem seu trabalho de
qualquer forma, mas que para essa cobrança ficasse mais efetiva o professor
deveria ser melhor remunerado e ter melhores condições de trabalho. Esse
enunciado tem como conteúdo temático o posicionamento do professor frente à
profissão e as condições de trabalho docentes.
Outro ponto levantado como obstáculo em um
enunciado seguinte, é a falta de pré-requisitos dos alunos ao avançarem em
direção ao ensino médio. Esse enunciado é construído inicialmente pela crítica
aos professores das séries iniciais, que segundo Joana não estão bem
preparados. E novamente ela finaliza apontando uma possível solução ao dizer
que nas séries iniciais os alunos deveriam aprender muito bem a ler e
interpretar textos bem como ter o raciocínio lógico desenvolvido.
CONCLUSÕES
Um dos obstáculo trazido pela professora foi a relação entre a
classe docente e o governo, muito embora as reclamações feitas pela docente
não se limitem a criticas partidárias ou reivindicações salariais. A professora
Joana almeja ser valorizada e respeitada como profissional. E ao se colocar
como peça-chave na educação científica, sua opinião baseada na vivência como
docente é de suma importância para a implementação de um ensino de Ciências de
qualidade. As regras e metodologias impostas aos professores pelas políticas
governamentais não são garantidoras de qualidade, pelo contrário, provocam o
sentimento de desvalorização nos professores. Bem como medir a qualidade
através de rankings faz com que alguns professores apenas se esforcem para
chegar aos resultados quantitativos esperados sem se preocupar com a
aprendizagem em si. Em outros trabalhos (Rezende et.al.-2011) a desvalorização
do professor e as más condições de trabalho também aparecem como um problema da
qualidade de educação, bem como a questão salarial que em nossa análise não se
mostrou tão forte.
Outra questão que surgiu nessa análise e que
está de acordo com outros trabalhos já publicados (Rezende et.al.-2011), é a
questão da falta de pré requisitos que os alunos têm chegado no ensino médio e
na última parte do ensino fundamental. Entretanto, enquanto em nossa análise a
culpabilidade 1022
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desse fato é direcionada somente à falta de
preparação de professores das séries anteriores, em Rezende et. al. (2011)
aparece em evidência a falta de interesse do discente pelo estudo como
responsável por essa questão.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. M. Os Gêneros do Discurso. In:
______. Estética da Criação Verbal. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.
261-306.
FERRAZ, G. Perspectivas de professores de
Física sobre as políticas curriculares nacionais para o ensino médio.
Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e
Saúde, NUTES, UFRJ, Rio de Janeiro, 2012
GATTI, B.A. Grupo focal na pesquisa em
ciências humanas. Brasília: Líber Livro, 2005.
LEMKE,
J.L. Research for the future of science education: New ways of learning new
ways of living. In: International Congress on Research in Science Teaching, 7.,
2005, Granada. Proceedings... Granada: [s.n.], 2005.
PINHEIRO, N. C. Educação de qualidade na
perspectiva de professores de Física da educação básica : um estudo de
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Bourdieu. Dissertação de Mestrado em Ensino de Física, Instituto de
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REZENDE, F; DUARTE, M.S; SCHWARTZ, L.B;
CARVALHO,R.C. Qualidade da educação científica na voz dos professores. Ciência
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VENEU, A.A. Perspectivas
de professores de Física do ensino médio sobre as relações entre o ensino de
Física e o mercado de trabalho: uma análise bakhtiniana. Dissertação de
mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde, NUTES,
UFRJ,Rio de Janeiro, 2012.