Núcleo OBEDUC - MG/RJ/RS

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terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

OBSTÁCULOS À QUALIDADE DO ENSINO DE CIÊNCIAS NO BRASIL: O CASO DA PROFESSORA JOANA




 IX CONGRESO INTERNACIONAL SOBRE INVESTIGACIÓN EN DIDÁCTICA DE LAS CIENCIAS
Girona, 9-12 de septiembre de 2013
COMUNICACIÓN
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OBSTÁCULOS À QUALIDADE DO ENSINO DE CIÊNCIAS NO BRASIL: O CASO DA PROFESSORA JOANA
Josiane de Souza, Paulo Roberto Menezes Lima Júnior, Fernanda Ostermann
UFRGS
RESUMO: A questão de qualidade no ensino vem sendo colocada no centro de qualquer discussão acerca dos objetivos gerais da educação cientifica. Em outros trabalhos já se tem avançado sensivelmen­te na direção de compreender as concepções de qualidade sustentadas por professores de Ciências da educação básica. Neste trabalho investigamos outro ponto que pode ser crucial e definidor de futuras práticas: quais são os obstáculos que os docentes dizem encontrar no processo de busca por um ensino de qualidade. Os resultados apontam que a imposição de políticas educacionais e reformas educacio­nais instituídas por especialistas são assumidas pelos professores de Ciências como contrárias a medidas qualitativas. Outros pontos criticados foram os medidores oficiais que atuam como rankings quantita­tivos e a falta de pré-requisitos com que os alunos têm chegado ao ensino médio.
PALAVRAS-CHAVE: qualidade no ensino de Ciências, análise bakhtiniana, concepção de professores
OBJETIVOS
Tal como ocorre em qualquer processo planejado da transformação de um sistema de relações, a trans­formação da educação científica jamais pode dispensar uma análise de sua conjuntura e de seus ob­jetivos: Transformar o quê e com que propósito? Embora a pesquisa em educação científica tenha subjacente à sua produção acadêmica alguma medida de preocupação com a qualidade do ensino de Ciências, é só mais recentemente que se percebe uma mudança sensível de foco desde preocupações de ordem técnica com o ensino para uma reflexão mais profunda sobre os próprios objetivos da educação cien­tífica no conjunto do sistema educacional.
Ao longo das últimas décadas, a educação em Ciências tem sido impulsionada por interesses polí­ticos na direção da formação de força de trabalho técnica e cientificamente qualificada. Paralelamente à valorização propedêutica (ensino preparatório para o vestibular ou para o trabalho técnico, por exemplo), a predominância de uma ideologia que considera a aprendizagem abstrata mais ‘nobre’ que a aprendizagem prática (Lemke, 2005) tem contribuído para reforçar, no ensino de Ciências, a ênfase na aquisição de conceitos e seu distanciamento das relações entre ciência e sociedade.
O conceito de qualidade está posto no centro de qualquer discussão sobre os objetivos gerais da educação científica. De fato, órgãos governamentais responsáveis pela educação pública têm constante­mente buscado desenvolver métodos (sempre mais ou menos controversos) para implementar um “en­sino de qualidade”, quantificando os níveis em que essa qualidade se configura nas escolas (por meio do IDEB, por exemplo) e gerindo as transformações do sistema educacional em vista dos seus propósitos.
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Este trabalho insere-se no projeto do Observatório da Educação denominado “A qualidade no ensino de Ciências na perspectiva de professores do nível médio”. Transcorridos quase quatro anos de projeto e tendo avançado sensivelmente em direção à compreensão das concepções de qualidade sustentadas por professores da educação básica, percebemos que outro ponto poderia ser crucial e definidor de futuras práticas: quais são os obstáculos que os docentes dizem encontrar no processo de busca por um ensino de qualidade.
Assim, apresenta-se neste trabalho uma análise das interações discursivas de uma professora da educação básica em exercício na rede pública da cidade de Porto Alegre (ela será chamada professo­ra Joana). As referidas interações discursivas ocorreram em um grupo focal (GATTI, 2005) sobre o tema Qualidade no ensino de Ciências, do qual participaram, além da referida professora, outros oito professores de escolas públicas e privadas da cidade de Porto Alegre. A análise apresentada tem seus fundamentos na filosofia da linguagem de Bakhtin (2003) e foi realizada com o propósito de responder à seguinte questão de pesquisa: Quais são os obstáculos que os professores de nível médio encontram para implementar um ensino de Ciências de qualidade?
MARCO TEÓRICO
A filosofia da linguagem de Bakhtin foi escolhida como marco teórico deste trabalho por ser essencial à sua realização analisar, além do que é dito, o contexto verbal e extraverbal do discurso. Bakhtin (2003) se preocupa em definir seu conceito de enunciado, unidade concreta da comunicação verbal, em opo­sição às unidades abstratas da língua (frase, oração, parágrafo). Nessa distinção, identifica uma série de propriedades exclusivas do enunciado (por exemplo, que todo o enunciado é produzido por alguém, direcionado a outra pessoa em situações concretas da comunicação verbal).
Ao lado de suas propriedades particulares, Bakhtin (2003) acrescenta que os enunciados podem ser caracterizados por três elementos: (1) estilo de linguagem (composto principalmente pelos jargões e recursos gramaticais empregados), (2) construção composicional (organização do enunciado em partes para formar um todo acabado), (3) conteúdo temático (o quê do enunciado).
Ajuntando a esses três conceitos o pressuposto de que, enquanto unidade concreta da língua, os enunciados podem ser bastante reveladores do contexto que circunscreve os falantes, passamos à análi­se dos enunciados da professora Joana com vistas a responder nossa questão de pesquisa.
METODOLOGIA
Com o propósito de explicitar a relação entre o referencial teórico e as operações que constituem o procedimento de análise, utilizou-se uma versão, com pequenas adaptações, de um dispositivo analí­tico disponível na literatura (FERRAZ, 2012; VENEU, 2012). Este dispositivo leva em consideração, principalmente, dois aspectos da teoria de Bakhtin: primeiro, que a análise dos fenômenos lingüísti­cos deve ser feita em vista das condições concretas em que se realizam e, segundo, que a unidade de comunicação verbal é o enunciado (em oposição às unidades da língua tais como a frase e a oração). Em linhas gerais, o dispositivo propõe: (1) Identificação dos enunciados; (2) Leitura preliminar dos enunciados; (3) Descrição do contexto extraverbal e (4) Análise dos enunciados.
Identificação dos enunciados. Especificamente nesse trabalho, como analisamos uma discussão em um grupo focal, nem sempre o enunciado foi definido apenas pela alternância de sujeitos. Por exem­plo, se o falante ainda não havia concluído sua fala e alguém o interrompesse brevemente para pedir algum esclarecimento, consideramos o enunciado contínuo, até haver uma real alternância de falante.
Leitura preliminar. Durante a segunda etapa, procurou-se identificar nos enunciados que consti­tuem o corpus os seguintes elementos, tendo em vista a questão de pesquisa: (1) relações de sentido
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entre os enunciados dos participantes; (2) estilos de linguagem empregados; (3) construção composi­cional; e (4) conteúdo temático. No entanto, durante a leitura preliminar, a identificação feita desses elementos ainda é mais ou menos intuitiva, flexível e pouco detalhada. O propósito principal dessa primeira leitura é, no contato com o texto, identificar algumas análises possíveis.
Descrição do contexto extraverbal. Um enunciado verbal é sempre composto de duas partes; a que podemos compreender nas palavras e a que fica subentendida durante a fala. O conteúdo extraver­bal diz respeito a essa segunda parte e está relacionado a três características: o horizonte comum dos interlocutores, o conhecimento e a compreensão comum da situação por parte dos interlocutores e a avaliação comum dessa mesma situação. Cabe ressaltar que comum aqui, quer dizer, compartilhamen­to de determinada situação entre os sujeitos, mas não necessariamente em concordância de opinião.
Análise dos enunciados. Partindo de uma percepção mais ou menos intuitiva que adquirimos do texto durante a leitura preliminar e, confrontando essas percepções com mais dados textuais e extra­textuais, a versão final da análise nos enunciados é produzida por meio das ferramentas teóricas dispo­níveis com o propósito de responder à questão de pesquisa.
RESULTADOS
Da descrição do contexto extraverbal
No momento em que o grupo focal foi realizado o Estado do Rio Grande do Sul passava pelas seguin­tes transformações políticas: (1) final de governo PSDB; (2) uma reforma no plano da carreira dos professores estava sendo discutida; e (3) acabava de ser implantado o referencial curricular regional “Lições do Rio Grande”. Além disso, destaca-se também o episódio do julgamento de uma professora pelo judiciário1. Trata-se de um momento de sensível insegurança que os professores estão passando, e que fica evidenciado nas falas proferidas durante o grupo focal.Todos os participantes já haviam ministrado aula em escola pública e mesmo os que atualmente não estavam lecionando nesse tipo de instituição, acabaram sendo levados pelo grupo a criticar o sistema público de ensino.
A professora Joana tem entre 50 e 60 anos e viveu o momento de ditadura no Brasil, já como educadora. Ela já ministrou aula em escolas particulares, mas atualmente leciona apenas em escola pú­blica. Além de professora já foi vice-diretora. Sua formação inclui cursos de especialização e formação continuada.
Da análise dos enunciados
Ao fazer a análise é possível evidenciar que em todos os seus enunciados a professora Joana procura uti­lizar uma linguagem coloquial, inclusive usando ditos populares em alguns momentos, para enfatizar suas ideias. Seus enunciados geralmente possuem uma construção composicional onde inicia com uma crítica, seguida de um argumento ou exemplo e finaliza com uma proposta para solução estruturada sobre sua vivência.
Durante todo o grupo focal fica evidente o descontentamento não apenas da professora Joana mas de todos os professores com a política educacional do governo. Em um primeiro momento ela tece sua
1. Em uma escola da região metropolitana de Porto Alegre, após um mutirão comunitário para a restauração estrutural dos prédios da instituição, um dos alunos pichou um dos muros. Uma das professoras da escola exigiu que o aluno limpasse. Enquanto o aluno limpava, ele ficava fazendo gracinhas e a professora o chamou de bobo da corte. Como alguns colegas filmaram o ato, a família do estudante processou a professora e a mesma foi acusada e sentenciada a pagar uma multa. Esse evento causou grande revolta nos docentes do RS. 1021
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crítica com um enunciado que contém como conteúdo temático a imposição de medidas educacionais pelo governo. A professora coloca o Estado como um obstáculo intransponível, porém suas críticas vão além do Estado e se colocam também aos intelectuais que propõe leis e diretrizes para a educação. Essa professora almeja ser ouvida, pois acredita que em toda implementação de medidas educacionais os que mais poderiam contribuir para a melhoria significativa do ensino de Ciências, são os próprios docentes de nível básico, por estarem em sala de aula diariamente convivendo com a realidade. Joana constrói esse enunciado inicialmente justificando que seu problema não é com o aluno e a sala de aula, mas com as mudanças repentinas a que as diretrizes da educação estadual são submetidas. Em seguida traz exemplos e argumentos para enfatizar a sua crítica e, por fim, propõe uma possível solução para esse impasse, que é o professor ser ouvido e participar na elaboração das medidas educacionais.
Em outro enunciado, o conteúdo temático é acerca dos instrumentos para medir qualidade insti­tuídos por órgãos de educação nacionais e internacionais. Ela tece a crítica, dizendo que os governan­tes e responsáveis pela educação no Brasil, parecem não estar preocupados se o aluno realmente está aprendendo ou não, mas todos estão muito preocupados com números e comparações. Acreditamos que nesse momento ela se refira as provas medidoras de qualidade existentes no Brasil, a exemplo de ENEM e SAEB e a alguns medidores internacionais que comparam médias educacionais entre países.
Nessa mesma direção, em outro enunciado, ela critica a atuação docente que, motivada por esses indicadores, acaba apenas tentando alcançar os objetivos quantitativos desse medidor. Em sua opinião o profissional que apenas faz com que os alunos passem de ano, sem mostrar a importância de ser um ser critico ou sem mostrar a importância real da educação, acaba por desvalorizar o seu trabalho e mal formar o seu aluno. Ela finaliza dizendo que os professores são pouco cobrados, e fazem seu trabalho de qualquer forma, mas que para essa cobrança ficasse mais efetiva o professor deveria ser melhor remunerado e ter melhores condições de trabalho. Esse enunciado tem como conteúdo temático o posicionamento do professor frente à profissão e as condições de trabalho docentes.
Outro ponto levantado como obstáculo em um enunciado seguinte, é a falta de pré-requisitos dos alunos ao avançarem em direção ao ensino médio. Esse enunciado é construído inicialmente pela crí­tica aos professores das séries iniciais, que segundo Joana não estão bem preparados. E novamente ela finaliza apontando uma possível solução ao dizer que nas séries iniciais os alunos deveriam aprender muito bem a ler e interpretar textos bem como ter o raciocínio lógico desenvolvido.
CONCLUSÕES
Um dos obstáculo trazido pela professora foi a relação entre a classe docente e o governo, muito em­bora as reclamações feitas pela docente não se limitem a criticas partidárias ou reivindicações salariais. A professora Joana almeja ser valorizada e respeitada como profissional. E ao se colocar como peça-chave na educação científica, sua opinião baseada na vivência como docente é de suma importância para a implementação de um ensino de Ciências de qualidade. As regras e metodologias impostas aos professores pelas políticas governamentais não são garantidoras de qualidade, pelo contrário, provocam o sentimento de desvalorização nos professores. Bem como medir a qualidade através de rankings faz com que alguns professores apenas se esforcem para chegar aos resultados quantitativos esperados sem se preocupar com a aprendizagem em si. Em outros trabalhos (Rezende et.al.-2011) a desvalorização do professor e as más condições de trabalho também aparecem como um problema da qualidade de educação, bem como a questão salarial que em nossa análise não se mostrou tão forte.
Outra questão que surgiu nessa análise e que está de acordo com outros trabalhos já publicados (Rezende et.al.-2011), é a questão da falta de pré requisitos que os alunos têm chegado no ensino mé­dio e na última parte do ensino fundamental. Entretanto, enquanto em nossa análise a culpabilidade 1022
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desse fato é direcionada somente à falta de preparação de professores das séries anteriores, em Rezende et. al. (2011) aparece em evidência a falta de interesse do discente pelo estudo como responsável por essa questão.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. M. Os Gêneros do Discurso. In: ______. Estética da Criação Verbal. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 261-306.
FERRAZ, G. Perspectivas de professores de Física sobre as políticas curriculares nacionais para o ensino médio. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde, NUTES, UFRJ, Rio de Janeiro, 2012
GATTI, B.A. Grupo focal na pesquisa em ciências humanas. Brasília: Líber Livro, 2005.
LEMKE, J.L. Research for the future of science education: New ways of learning new ways of living. In: International Congress on Research in Science Teaching, 7., 2005, Granada. Proceedings... Granada: [s.n.], 2005.
PINHEIRO, N. C. Educação de qualidade na perspectiva de professores de Física da educação básica : um estudo de interações discursivas em grupos focais, baseado na sociologia da educação de Pierre Bourdieu. Dissertação de Mestrado em Ensino de Física, Instituto de Física,UFRGS, Porto Alegre, 2011.
REZENDE, F; DUARTE, M.S; SCHWARTZ, L.B; CARVALHO,R.C. Qualidade da educação cien­tífica na voz dos professores. Ciência e Educação, v.17,n.2, p. 269-288, 2011.
VENEU, A.A. Perspectivas de professores de Física do ensino médio sobre as relações entre o ensino de Física e o mercado de trabalho: uma análise bakhtiniana. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde, NUTES, UFRJ,Rio de Janeiro, 2012.

INVESTIGANDO DISCURSOS E SABERES EXPERENCIAIS DOS PROFESSORES DE CIÊNCIAS SOBRE A INTERDISCIPLINARIDADE NO ENSINO PÚBLICOSECUNDÁRIO NO RIO GRANDE DO SUL (BRASIL)


 IX CONGRESO INTERNACIONAL SOBRE INVESTIGACIÓN EN DIDÁCTICA DE LAS CIENCIAS
Girona, 9-12 de septiembre de 2013
COMUNICACIÓN
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INVESTIGANDO DISCURSOS E SABERES EXPERENCIAIS DOS PROFESSORES DE CIÊNCIAS SOBRE A INTERDISCIPLINARIDADE NO ENSINO PÚBLICOSECUNDÁRIO NO RIO GRANDE DO SUL (BRASIL)
Erika Regina Mozena, Fernanda Ostermann
UFRGS- Brasil
RESUMO: Este trabalho em andamento visa compreender os discursos e os saberes dos professores de ciências de escolas públicas secundárias do Rio Grande do Sul (Brasil) sobre o tema interdisciplinarida­de, sob uma visão de mundo sócio-histórica-cultural, pensadateorico-metodologicamente a partir da relação entre a linguagem e seu uso situado como proposto por Bakhtin, e a noção de saber docente e seus condicionantes articulados por Maurice Tardif. A necessidade desse estudoconfigurou-se a partir das mudanças curriculares operadas no Brasil, na direção de se institucionalizar a interdisciplinaridade na escola básica e das lacunas apresentadas pelas pesquisas da área. Estudos preliminares apontam para o fato de que os professoresentendem a interdisciplinaridade essencialmente como a discussão de um único tema tratado de maneira isolada por todas asdisciplinas.
PALAVRAS-CHAVE: interdisciplinaridade, ensino médio, Bakhtin,Tardif, saber docente
OBJETIVOS
Este trabalho de doutoramento em andamento visa compreender os discursos situados e os saberes dos professores de ciências de escolas públicas secundárias do Rio Grande do Sul (Brasil) sobre o tema interdisciplinaridade. O ensino de nível secundário (ensino médio) no Rio Grande do Sul e no Brasil vem passando por mudanças sucessivas e atualmente as diretrizes curriculares nacionais1 propõem a in­terdisciplinaridade como base de organização do ensino, sendo que 20% da carga horária total devem ser destinados para o desenvolvimento de projetos interdisciplinares, oque mostra a importância de se conhecer e compreender os condicionantes envolvidos nas concepções e escolhas dos professores com relação à interdisciplinaridade. Como as pesquisas na área de ensino de ciências apresentam algumas lacunas, este trabalho pretende aprofundar o tema.
1. DCNEM (2012) – Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index. php?option=com_content&view=article&id=17417&Itemid=866 acessado em janeiro de 2013.
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MARCO TEÓRICO
Pautamos nossa visão de mundoe ametodologia de compreensão dos discursos dos professores numa perspectiva dialógica2pensadaa partir dos textos de Bakhtin (1995, 2003) e alguns de seus estudiosos: Brait (2007), Cereja (2007) e Veneu (2012).
Nessa perspectiva, assim como Bakhtin, compreendemoso homem (no caso o professor) como sujeito social, histórico e cultural, responsável por suas escolhas e responsivo ao outro, tendo sempre em vistaa importância da linguagem na formação e na vida do ser humano. Assim, a palavra é o foco central do estudo da linguagem, já que o signo reflete e refrata a realidade em transformação e nos per­mite compreender as ideologias pertinentes aos diferentes estratos sociais.Dessa maneira, para Bakhtin, o enunciado concreto é a externalização da atividade mental orientada pelas interações sociais.
Partindo também do pressuposto de que qualquer análise de enunciados nunca é neutra, procura­mos neste trabalho fundamentar nossa compreensão do discurso e dos atos do professor em sua ação cotidianana epistemologia da prática docente proposta por Maurice Tardif, para quem a docência é um diálogo situado, com vistas a transformar o mundo, e também um saber social3, partilhado por grupos específicos. O foco da sua epistemologiaé o estudo dos saberes docentes, pensados a partir da prática efetiva e situada do professor, além dospróprios discursos dele.
Para Tardif (2012), o trabalho do professor consiste essencialmente em gerir relações sociais. Assim para este autor, o professor se constrói dialogicamente na interação eu-mundo-outro, pois se relaciona com o seu objeto de trabalho fundamentalmente através da interação face a face com os alunos, atra­vés da qual desenvolve e usa seus saberes: “ensinar é, obrigatoriamente, entrar em relação com o outro” (Tardif, 2012, p.222).
Portanto, o saber do professor está sempre ligado a uma relação de trabalho com o outro, situado num espaço e num tempo próprio e enraizado numa instituição (a escola) e numa sociedade. E nesse processo dialógico de interação, o professor também se cria, também se transforma.
A importância do contexto situado no grande diálogo da ação docente também é fundamental na teoria de Tardif, já que os saberes docentes são construídos ao longo de toda a vida na relação do pro­fessor com a profissão docente, seja quando aluno nos bancos escolares, seja na formação inicial para o magistério, ou dentro da escola atuando como professor, configurando-se assim num “saber que se desenvolve no espaço do outro e para o outro” (Tarfif, 2012, p.186).
Também numa linha em que é possível integrar Tardifa Bakhtin, os saberes docentes propostos por Tardif se aproximam do campo da argumentação e do julgamento. Tardif também valoriza o discurso dos professores, pois segundo ele, os argumentos dos professores com seus juízos e valores, expressam seu conhecimento prático e nos permite chegar ao cerne de sua epistemologia: os saberes docentes.
Assim, a finalidade de uma epistemologia da prática profissional, segundo Tardif (2012), é revelar os saberes docentes, compreender sua natureza e como são integrados concretamente nas tarefas dos professores:comoele os produzem, internalizam, aplicam e os transformam em função dos condicio­nantes espaço-sócio-temporais do seu trabalho.
METODOLOGIA
Esse estudo, com sua perspectiva bakhtiniana, será realizado através da análise dos sentidos concretos dos enunciados completos envolvendo o tema interdisciplinaridade,proferidos pelos professores num
2. A relação dialógica remete-nos ao diálogo, uma atividade de interação linguística entre o eu e o outro num território socialmente situado. Pode-se compreender a palavra diálogo como toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.
3. Para Tardif, a palavra social designa “relação entre mim e os outros repercutindo em mim, relação com os outros em relação a mim, e também relação de mim para comigo mesmo quando essa relação é presença do outro em mim mesmo” (Tardif, 2012, p.15)
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contexto determinado. Por meio dessa análise procuraremos então relatar a nossa compreensão ativa e a nossa consequente atitude responsiva, além dos saberes profissionais percebidos.Assim, a busca pelacompreensão ativa do tema interdisciplinaridade e dos saberes docentes, será efetuada através de três etapas, descritas a seguir:
1. Identificação dos interlocutores: não apenas analisar os participantes imediatos do diálogo e suas práticas, mas também o papel que desempenham na Educação e nos enunciados específicos.
2. Contexto extraverbal: analisar o momento histórico, as finalidades do ato enunciativo, assim como a esfera social de circulação do signo.
3. Conteúdo temático: analisar o seu conteúdo (sentido global do enunciado) e as formas de discur­so. Essa análise necessariamente está ancorada com a identificação dos interlocutores e com o contexto extraverbal dos enunciados.
Pautados também na perspectiva da epistemologia da prática docente de Tardif, visamos uma pes­quisa não sobre o ensino ou sobre os professores, mas para o ensino e para os professores. Procurare­mos, assim, estudar os saberes docentes com relação à interdisciplinaridade tais como são mobilizados e construídos em situações de trabalho, em função dos seus condicionantes.
RESULTADOS
Os professores envolvidos nesse estudo são professores de ciências de escolas públicas secundárias (Física, Química ou Biologia) que participaram de um curso de formação continuada de professores sobre a proposta curricular que vigorou de 2009 até 2011 no Rio Grande do Sul, cuja principal tese era o desenvolvimento de certas competências (principalmente, Ler, Escrever e Resolver Problemas) conjugadas ao trabalho interdisciplinar e à contextualização (Rio Grande do Sul, 2009). Ao final desse curso de 90 horas, com aulas presenciais e apoio à distância, os professores produziram e aplicaram projetos interdisciplinares, que atualmente têm caráter obrigatório por lei.
A partir dos 103 trabalhos selecionados, que foram lidos e classificados conforme localização e seus temas, desenvolvemos as seguintes análises:
1. Identificação dos interlocutores. A princípio os professores escreveram seusprojetos finais do curso para o multiplicador (ministrante do curso de formação continuada), alguém com conhecimen­tos em educação, com algum conhecimento da proposta curricular e que, inclusive, deveria aprovar o professor no curso. Mas não necessariamente este foi seu único interlocutor, já que em muitos casos esse trabalho foi apresentado aos gestores das próprias escolas (diretores e coordenadores) e aos seus pares na escola. Em várias ocasiões foram pensados em conjunto pelos membros da escola. Outros lei­tores supostos para os trabalhos também são outros membros das universidades envolvidas, membros das Secretarias de Educação do Estado. Sendo assim, os professores procuraram se esmerar, apresen­tando trabalhos que julgam adequados dentro da proposta curricular e do que esperam dos órgãos gestores e não necessariamente representam as suas crenças e práticas.Não presenciamos qualquer tipo de crítica à metodologia de trabalho interdisciplinar e nem mesmo aos referenciais curriculares, tanto que eles foram citados na grande maioria apenas nas referências bibliográficas. Provavelmente, com ou sem referencial, os trabalhos seriam os mesmos, resultado um pouco preocupante, pois mostra como os cursos de formação continuada não mudam a dinâmica da sala de aula e como as propostas curriculares do Governo não são levadas a sério pelos professores.
O fato do interlocutor ser alguém hierarquicamente ou intelectualmente superior a ler o texto pode levar o professor a escolher melhor as palavras, a usar de clareza, de palavras rebuscadas e a “mostrar ser­viço”. Esse trabalho parece ter sido entendido pelo professor como uma propaganda do seu trabalho e 2439
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das suas qualidades. Também é preciso levar em conta que o projeto foi elaborado tendo em vista uma apresentação do mesmo em um seminário e os professores buscaram nessa ocasião o reconhecimento por seu trabalho que não obtêm nem dos gestores das escolas e nem dos pais dos alunos.
2.. Contexto extra-verbal4. Ainterdisciplinaridade apresentada pelos professores nesses trabalhos expressa como eles entendem que ela deveria ser ou conseguem realizar no cotidiano difícil de uma escola pública brasileira, onde além das dificuldades e desafios inerentes à profissão, os professores en­frentam falta de condições adequadas de trabalho, falta de espaço físico e adequado, má remuneração, além de mudanças políticas que ocasionam reviravoltas nas políticas educacionais.
Os professores trabalharam em grupos, em geral com os professores da própria escola e utilizaram muito poucoa ajuda dos multiplicadores nosambientes on-line para confecção dos trabalhos. Muitas vezes isso pode ter ocorrido por falta de tempo dos professores, que trabalham em média 36 horas semanais dentro da sala de aula, outras vezes por falta de interesse deles mesmo.
Pelo entusiasmo com que os professores apresentaram seus trabalhos durante os semináriosinterdis­ciplinares, parece-nos que eles julgaram seus trabalhos adequados e que estão sendo muito proveitosos para os alunos, ou seja, uma avaliação bastante positiva.
Conteúdo temático. Ao final do processo, dentre os 160 projetos disponíveis, foram selecionados 103 projetos, distribuídos por 72 municípios do Estado do Rio Grande do Sul.
Com relação aos temas dos trabalhos, 26 deles (25%) elegeram o tema Copa do Mundo (ou Áfri­ca), já que ao final do semestre este evento realizou-se na África do Sul. Com relação aos outros temas, suas escolhas em geral, foram justificadas pela atualidade ou por demandas da própria região, como os 8 trabalhos sobre o homem e o meio ambiente, os 7 relacionados à água (em geral no estudo dela em sua região) e também os 6 trabalhos sobre o lixo, entre outros.
Fig. 1. Frequência dos temas dos projetos interdisciplinares dos professores no curso Lições do Rio Grande 2010.
Com relação à interdisciplinaridade, os trabalhos analisados se “comportaram” da seguinte maneira:
– trabalhos em que todas as disciplinas atuam. Em geral são temas amplos (copa do mundo, ener­gia, meio-ambiente, lixo) e apenas multidisciplinares.
4. Todo o contexto e a coleta de dados envolvida nesta pesquisa está esmiuçada em Mozena, Ostermann e Cavalcanti (2011) e Ostermann, Mozena e Cavalcanti (2012). 2440
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– trabalhos com número reduzido de disciplinas, em geral por área de conhecimento que mos­tram mais sintonia entre as disciplinas. Exemplos: fogos de artifício, radiação.
Com relação à disciplina Física, observamos trabalhos em que:
– o professor de física só consta com o nome e/ou a disciplina física, não havendo qualquer espe­cificação de como a física seria trabalhada nesse projeto. Exemplos: eleições, AIDS etc.
– trabalhos em que a física não se relaciona de maneira coerente ao tema. Exemplos: drogas, bu­llying, crack, namoro, entre outros.
CONCLUSÕES
Pelos estudos realizados até então, percebemos que os professores pesquisados usaram, de acordo com suas demandas e condicionantes, a interdisciplinaridade não como uma visão de mundo ou de como o homem interage com o conhecimento por ele mesmo produzido, mas como uma metodologia de ensino pontual e esporádica, caracterizada pela escolha de um tema comum a várias disciplinas, que é trabalhado de maneira isolada na sala de aula, muitas vezes sem nenhuma relação entre si.
Assim, ao elegerem, por exemplo, o tema copa do mundo, os professores não se preocuparam em integrar os conhecimentos de suas disciplinas dentro do tema. Ao contrário, cada um trabalhou iso­ladamente o assunto,sendo assim, apenas o tema interdisciplinar, pois o conteúdo continuou sendo disciplinar. Por exemplo: física: física do futebol, química: doping, biologia: a origem da vida na África, geografia: A África do Sul, filosofia: o Apartaid, etc.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. (1995). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC.
BAKHTIN, M. (2003). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes.
BRAIT, B. (2007). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto.
CEREJA, W. (2007). Significação e tema. In: BRAIT, B. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contex­to, pp. 201-220.
MOZENA, E.R.; OSTERMANN, F.; CAVALCANTI, C. (2011). Lições do Rio Grande: um relato sobre o processo de elaboração dos referenciais curriculares para o ensino de Física no Rio Grande do Sul e o acompanhamento de cursos de formação continuada para professores nessa perspectiva. Anais do XIX Simpósio Nacional de Ensino de Física. São Paulo:,Editora da SBF, pp. 1-12.
OSTERMANN, F.; MOZENA, E.R.; CAVALCANTI, C. J. H.(2011). Curriculum standards for teaching physics in Brazil. Lyon:e-book proceedings of the ESERA 2011 Conference.Disponívelem: http://lsg.ucy.ac.cy/esera/e_book/base/ebook/strand9/ebook-esera2011_OSTERMANN-09.pdf
RIO GRANDE DO SUL. (2009).Referenciais Curriculares do Estado do Rio Grande do Sul: Ciências da Natureza e suas Tecnologias.Porto Alegre: SE/DP. Disponível em: http://www.educacao.rs.gov.br/ dados/refer_curric_prof_vol2.pdf
TARDIF, M. (2012).Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes.
VENEU, A.A.(2012). Perspectivas de professores de física do ensino médio sobre as relações entre o ensino de física e o mercado de trabalho: uma análise bakhtiniana. Dissertação de Mestrado do programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Saúde. Rio de janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro.