Núcleo OBEDUC - MG/RJ/RS

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quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O QUE DIZEM OS PROFESSORES ACERCA DA QUALIDADE DO ENSINO DE CIÊNCIAS: UMA ANÁLISE A PARTIR DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Testa Braz da Silva, Alcina Maria1
, Queiroz, Glória2
1
IFRJ/ Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Ensino de Ciências,
alcina.silva@ifrj.edu.br
2UFF/Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação, gloriaq@superig.com.br
Resumo
O objetivo deste trabalho é apresentar os resultados da identificação e análise das
representações acerca do tema “Qualidade do Ensino de Ciências”, na perspectiva dos
docentes do Ensino Médio que ministram tais disciplinas (Física, Química e Biologia).
O marco teórico-metodológico consistiu na abordagem psicossociológica das
Representações Sociais. O desenho de pesquisa correspondeu a coleta dos dados pela
técnica do grupo focal e a análise qualitativa do material simbólico utilizando o
software ATLAS.ti (Muhr, 2001), o que permitiu inferir as redes semânticas do
universo representacional dos sujeitos. Os resultados apontaram que o tema qualidade
se encontra presente nos discursos a partir dos obstáculos ao seu alcance, os quais
aparecem associados aos elementos do cotidiano escolar, à dimensão curricular, aos
percursos formativos e às políticas públicas.
Palavras-chave: Qualidade do ensino, Ensino de Ciências, Representações Sociais,
ATLAS.ti.
Introdução
As transformações decorrentes dos processos de globalização e de democratização das
sociedades contemporâneas vêm definindo as configurações da denominada “Sociedade
da informação”, o que envolve novos sistemas de comunicação, como defende Castells
(1999). Tais sistemas implicam na construção de novas linguagens, novas formas de
compreensão do mundo, que se constituem em verdadeiras redes interativas. Conceitos
como cultura, complexidade e virtualidade geram novos significados para melhor
entender a sociedade contemporânea e suas transformações, possibilitando situar os
problemas relativos à educação em um contexto mais amplo (Pretto e Pinto, 2006).
A hipótese que norteou este trabalho foi de que este novo cenário vem trazendo a
inserção do “novo”, do não familiar, no mundo social e, consequentemente, no universo
educacional. Esse “novo” passa a fazer parte da construção de modelos formativos e
curriculares, seja na inserção de um novo conteúdo, uma nova disciplina, um novo
recurso didático, uma nova modalidade de ensino ou de avaliação, gerando mudanças de
opiniões, concepções, comportamentos e atitudes. Este contexto, advindo das novas
configurações econômicas, sociais, filosóficas e culturais, se apresenta como um espaço
propício à produção coletiva de diversos significados acerca de fenômenos da
contemporaneidade que, ao impactarem o campo educacional, agregam novas
significações à discussão sobre qualidade do ensino em geral e, em particular, no que se
refere ao ensino das ciências.
Questões relativas ao entendimento do que seja uma educação de qualidade e ao papel
da escola em uma sociedade globalizada e do Ensino das Ciências no contexto desta
sociedade consistem em objetos de debates, consensos e dissensos em vários segmentos
sociais. A multiplicação e diversificação de situações vivenciadas em sala de aula têm desafiado os professores no sentido de repensarem práticas e estratégias pedagógicas
mais adequadas à realidade da comunidade escolar nesta sociedade em processo de
mudança. Qualidade, sendo um termo polissêmico, imprime múltiplos significados às
ações desses profissionais.
Aguiar (2009) discute os desafios inerentes a essas ações ao retratar em seus resultados
de pesquisa a atuação do professor de Física em sala de aula. O autor define a escola de
qualidade como “uma escola que promove a aprendizagem e o desenvolvimento dos
estudantes” (p. 240), permitindo apropriação do que ele denomina de ferramentas
culturais, ou seja, o conhecimento acumulado tanto no campo científico como artístico
no decurso da história da humanidade. Esta direção remete à necessidade de se pensar
em um projeto politico que, como destaca o autor, por sua abrangência mobilize aqueles
que se proponham a enfrentar tais desafios na superação dos obstáculos à escola de
qualidade. No cerne dessa discussão se encontra, portanto, o papel dos professores que,
como os mais imediatos difusores de fenômenos no cenário educacional, consistem em
um grupo profissional gerador de representações sociais acerca de objetos que
mobilizam em suas conversações e a partir de seus interesses no campo da Educação,
assim como, no caso dos professores das disciplinas científicas, no campo do ensino
destes conhecimentos.
Objetivos
O objetivo deste trabalho é apresentar os resultados da identificação e análise dessas
representações acerca do tema “Qualidade do Ensino de Ciências”, na perspectiva dos
docentes do Ensino Médio que ministram tais disciplinas (Física, Química e Biologia).
O estudo empírico que gerou este trabalho envolveu o contexto educacional dos três
núcleos de pesquisa componentes do Projeto “Ensino de Ciências de qualidade na
perspectiva dos professores de nível médio”, aprovado no Programa “Observatório da
Educação” da CAPES/INEP/Brasil/ Edital 2008, e estruturou-se por meio da realização
de três grupos focais nos Estados brasileiros do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio
Grande do Sul. Neste trabalho será apresentada a análise do grupo focal realizado na
Cidade do Rio de Janeiro, com a participação de nove professores das disciplinas
científicas, representativos do universo das escolas selecionadas no planejamento do
projeto. Essa seleção tomou por referência a avaliação oficial brasileira medida pelo
IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação básica) e pelo ENEM (Exame Nacional
do Ensino Médio), considerando escolas da administração Pública, Estadual e Federal, e
da rede Particular das três diferentes regiões do país.
Marco teórico
Um dos marcos teórico-metodológicos do projeto consistiu na teoria das
Representações Sociais, na abordagem psicossociológica proposta por Moscovici (1978,
1981, 1986, 1988, 2003), o qual é assumido também como marco teórico deste trabalho.
Com base nesta teoria, é possível assumir que o cenário de inserção do “novo” é
propício para criação de representações sociais, tendo em vista que essa é a finalidade
do processo de criação de todas as representações. Segundo os argumentos do autor, as
representações sociais são criações coletivas em condições de modernidade. Tais
construções estão ligadas aos processos sociais e relacionadas às mudanças na
sociedade, permitindo a transformação do novo, do desconhecido, em algo familiar,
pois o que é não familiar intriga, perturba e gera desconforto.
A teoria das Representações Sociais tem por substrato a definição do conceito de
Representação Social proposta por Moscovici em 1961 no estudo sobre a Representação
Social da Psicanálise. Tal definição delineia o conceito a partir da função simbólica e do potencial de construção do real, alicerçados em dois processos que tornam possível o
movimento de familiarização de fenômenos socioculturais: a objetivação e a
ancoragem.
O processo de objetivação consiste, conforme argumentação elaborada por Moscovici
(2003), em “transformar algo abstrato em algo quase concreto, transferir o que está na
mente em algo que exista no mundo físico” (p. 61). Nesse sentido, permite “descobrir a
qualidade icônica de uma ideia” (p. 71), imprimindo materialidade a conceitos
científicos, ou seja, tornando-os naturais para os grupos sociais que com estes conceitos
lidam na multiplicidade de situações vivenciais. O mecanismo de naturalização
possibilita compreender o papel do processo de objetivação na caracterização do
pensamento social (Vala, 2000).
O processo de ancoragem possibilita a aproximação daquilo que é estranho,
perturbador, aparentemente sem sentido, a alguma categoria já existente, construindo
uma rede de significação em torno do fenômeno, estabelecida a partir de relações com
valores e práticas dos indivíduos em seus grupos de referência. Doise (1990) caracteriza
a ancoragem como um processo de “incorporação de novos elementos de saber em uma
rede de categorias mais familiares” (Doise, 1990, p. 128), o que implica em um
conjunto de transformações que integra cognitivamente o fenômeno representado a um
sistema de pensamento social pré-existente. Nesta perspectiva, portanto, “ancorar é
classificar e dar nome a alguma coisa” (Moscovici, 2003, p. 61), é transformar um
conceito que invade o nosso cotidiano, que nos intriga e perturba, em um sistema
particular de categorias, comparando e classificando com base em categorias familiares.
Desenho Metodológico
O desenho de pesquisa consistiu na coleta dos dados pela técnica do grupo focal,
durante uma sessão gravada em áudio e vídeo (Gondim, 2002). Em seguida, foi feita
uma análise qualitativa do material simbólico utilizando o software ATLAS.ti (Muhr,
2001), o que permitiu inferir as redes semânticas do universo representacional dos
sujeitos. Esta ferramenta de análise pertence à categoria de softwares conhecidos como
CAQDAS (Computer Assisted Qualitative Data Analysis Software) e permite o manejo
de dados gráficos, textuais e audiovisuais. Na perspectiva de análise deste trabalho, a
partir da decomposição do conteúdo do discurso dos participantes da pesquisa em
citações representativas desse discurso, que foram posteriormente codificadas e reunidas
em unidades de sentido, foi possível identificar as relações que esses códigos
estabeleciam acerca do objeto de investigação. As unidades de sentido, representativas
dos conteúdos analisados, permitiram a identificação das Representações Sociais do
grupo investigado.
Resultados e Conclusões
Os resultados da pesquisa apontaram que o tema qualidade se encontra presente nos
discursos dos professores participantes a partir dos obstáculos ao seu alcance, os quais
aparecem associados aos elementos do cotidiano escolar, à dimensão curricular, aos
percursos formativos e às políticas públicas. A seguir encontra-se apresentada, na
Figura 1, a Rede Semântica, constituída dessas categorias representacionais construídas
coletivamente pelo grupo e dos encadeamentos que emergiram dessa análise. Figura 1: Qualidade na voz dos docentes - Estado do Rio de Janeiro/Brasil
Os obstáculos associados a um cotidiano escolar de qualidade estão definidos: por uma
necessidade de reflexão sobre a própria prática desses professores; pelo fator
motivacional, tanto para o professor como para o aluno, o qual se encontra em uma
relação de associação com a importância de aprender com prazer, de saber buscar a
informação e estabelecer momentos de troca e interlocução; pelo papel do professor no
processo de avaliação das situações de aprendizagem; pelo entendimento do conteúdo e
sua relação com o cotidiano dos alunos.
Os obstáculos referentes à dimensão curricular estão explicitados na necessidade de
repensar o currículo com vistas a mudanças em sua estrutura, mas sem apontar a direção
de mudança, enquanto que os obstáculos associados aos percursos formativos
encaminham a reflexão não apenas sobre a necessidade de uma melhor formação prévia
do aluno, mas também para o questionamento da própria qualidade da formação do
professor.
No que concerne às politicas públicas, os obstáculos aparecem apenas como sendo de
ordem administrativa e estrutural, desvelando a ausência de uma análise crítica por parte
dos professores acerca das finalidades educacionais no contexto da sociedade
contemporânea.
O caráter polissêmico do tema qualidade possibilita uma análise da perspectiva da
Teoria das Representações Sociais que aponta para os aspectos mobilizadores que são
gerados a partir das conversações, opiniões convergentes e divergentes, atitudes e
posicionamentos frente a essa discussão. Esses aspectos permitem considerar que o
tema apresenta uma relevância sociocultural para os grupos envolvidos ou impactados
por ele, o que conforme argumenta Sá (1998) consiste em um dos critérios definidores
de um fenômeno de representação social.
Os processos representacionais de objetivação e ancoragem resultam em um conjunto
de imagens e conceitos que se materializa nos obstáculos identificados pelos professores
para se alcançar um ensino de qualidade e no impacto que imprimem nas ações,
condutas, comunicações e práticas sociais desses profissionais, o que pode ser inferido
no discurso recorrente acerca da falta de qualidade.
Considerando que no cenário educacional contemporâneo vem ocorrendo um
deslocamento da atenção, antes centrada na avaliação do processo ensino–
aprendizagem, para variadas instâncias de avaliação, como avaliação de instituições, de
sistemas, de projetos e políticas públicas, a discussão em torno da qualidade da
educação e da qualidade de ensino se apresenta conformada pelas formas concebidas e difundidas em diferentes tipos de textos, sejam depoimentos e entrevistas na mídia ou
documentos oficiais e artigos acadêmicos. Tais formas se constituem em mecanismos
que sinalizam divergências presentes nas abordagens envolvidas e mantêm a instituição
escolar no foco de contínuas discussões sobre o tema qualidade como forma de
legitimar o papel da escola e da Educação na sociedade.
Esse panorama se traduz nas falas dos professores participantes da pesquisa em uma
angústia diante da impotência que sentem em modificar o quadro em que se encontra a
Educação Básica e o ensino de Ciências nas escolas públicas brasileiras. Isto nos obriga
a pensar com mais profundidade sobre as representações equivocadas de qualidade que
circulam e se difundem no campo midiático e no cotidiano educacional, conformadas
pelos rankings supostamente científicos das avaliações oficiais, como ENEM e IDEB.
Uma reorientação dos currículos das Ciências para questões e problemas sociais a serem
enfrentados por toda a humanidade já encontra respaldo em teorias e movimentos
educacionais, o que urge pelo apoio oficial dos governos para que se adote uma
educação de qualidade socialmente responsável, de maneira que o sentido político
embase uma discussão crítica sobre qualidade nas construções representacionais dos
professores.
Referências bibliográficas
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